segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Pepino Maluco

Dizem que em toda cidade tem um louco. Na Rialma antiga tinha a Sanfona; a Vila Nova, cidade dos construtores de Goiânia, tinha o Xaxado. Em Palmelo a doida era chamada de Cachoeira. Vivia atormentada pelos garotos que não tinham o que fazer. De longe, com um olho na Cachoeira e o pé apontado para onde deveriam correr, eles provocavam a doida. Pepino, o menor, era também o mais atrevido:

-A Cachoeira não me pe-e-e-ga!

Cada um corria para um lado.

Sem saber a quem pegar, ela arremessava uma vara ensebada no rumo dos garotos. Nunca acertava o alvo.                             

Jamais alguém soube de onde ela viera. A doida chegou sem deixar rastros na entrada. Todos curtiam a Cachoeira, mesmo sem saber a sua origem nem como vivia. Nos dias sem sol ela rondava as ruas de Palmelo com seu cheiro azedo de quem não tomava banho. Nestes dias, misteriosamente, ela desaparecia como o arco-íris depois da chuva. Para muitos a Cachoeira era um fantasma. Eu, ao contrário, sentia, literalmente, que ela tinha carne e osso. Com certeza mais carne, pois o seu cheiro de alho era  real.


Nos dias nublados ela andava pela cidade e, rápido, sumia igual fumaça no vento. Sem deixar marcas. Reaparecia no ventre da escuridão. Bêbada, chegava rindo e bailando, dizendo tolices com sua voz rouca. Conversava animada com um ser invisível que parecia acompanhá-la nas catacumbas do dia morto. Falava alto com votos de leviana felicidade.


Seus movimentos, imprecisos, eram reumaticamente dolorosos. O nariz tucano da doida despontava num rosto lacrado com a máscara da própria alma. Tinha verrugas de feiúra. Sua pele e roupas encardidas traziam o cheiro de alho. Um insuportável cheiro de alho! Num dia intolerável ela fumou um maço de cigarros Urca. Seu corpo mofo também cheirava a cigarro. Insuportável cheiro de fumo!  Na chaminé da sua casa, no fim da rua, os picumãs habitavam com morcegos defumados. Neste dia, em que as bruxas fugiram do quinto dos infernos, a única janela da casa ficou aberta. Pepino, curioso, pulou para dentro.


A janela da casa assombrada bateu desesperadamente contra si mesma; uma batida seca no portal grosso de aroeira. O vento passou o dia brincando de abrir e fechar a janela. E agora, quando o ar úmido e macio ressoar o pinote sonoro dos grilos, a noite chegará assustadora. Neste momento, a janela deseja que alguma mão bondosa tramela suas folhas para encerrar a missão diária: abrir e fechar. Para isso ela fora inventada por um pedreiro folgado que não sabia como fechar o último buraco da parede. Assim nasceu a janela: faltou tijolo para completar a parede. 


A noite chegou e as luzes foram se apagando; uma aqui, outra lá. Até ficar tudo escuro como breu. A escuridão também cobriu a casa de Cachoeira. Só ficou uma luz acesa na casa da mãe de Pepino que varou a noite no desfio de um terço. O dia chegou com o céu limpo e o sol brilhando. Na casa assombrada, agora vazia, a janela batia devagar com o vento passando através de suas gretas. O tempo também passou.

Anos depois, em Pilar, um doido que se chamava Pingo apareceu na cidade. Até os cachorros latiam quando ele passava. Os garotos, peraltas, provocavam a ira do doido:

- Pingooo!. Pingo de Cachoeeeira!

E ele atirava pedras para todos os cantos. Sem acertar ninguém.

Pois é, Pepino. Em toda cidade tem um louco.

                          Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV

0 comentários:

Postar um comentário