quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Labaredas Gordas

Não sou chique. Fui brega.  Acho que ainda sou assim. Daqueles que escrevia nas costas da foto dada à namorada: "Olha esta foto enquanto o original pensa em ti". Vergonha de ter feito isso? Claro que não. Pior era um amigo meu que carregava um espelhinho de bolso com foto de mulher pelada. Não era eu, tá? Não acredita? Fazer o que, né? Depois de abrir esta crônica falando que sou brega estou sem autoridade para insistir no contrário. Se bem que já confessei a minha ingenuidade de roceiro em outras crônicas. Na verdade ainda sou um caipira de Porto dos Barreiros.

A minha vinda para Goiânia, em 1958, burilou um pouco o meu jeito. Os meus contatos com outras cidades ajudaram nisso. Pois é. Hoje conheço Hidrolândia, Aragoiânia... Desculpe a brincadeira. Fiz isso para amenizar o que vou contar a seguir. Falando melhor, viajei mais longe um pouquinho.

Mas, a grande viagem que ainda faço é através do imaginário. Os meus sonhos e a minha utopia me cutucam a toda hora. Por causa desse modo caipira gosto de lidar com pessoas mais simples. Quando fui vereador em Goiânia, em 91 e 92, representei a última favela de Goiânia: o Morro do Aranha. Gil do Pagode, amigão dos “aranhas” morava no Bairro Popular. Por meio dele conquistei a amizade dos moradores da favela.

Procurei, durante o meu mandato, retribuir o carinho dos moradores. Ninguém ousava subir o morro sozinho; eu ia sem receios. Seus becos estreitos eram aterradores. Muitas vezes tive que subir, à noite, para atender ao chamado de algum morador. Numa delas, feita a uma mulher doente, me foi pedido um colchão de espuma. Ela, com tuberculose, dormia no chão úmido sobre um monte de jornais velhos. A favela ficava pendurada no antigo leito da estrada de ferro Goiânia-Campinas, no aterro do Setor Norte Ferroviário, onde um chuvisco era temporal.

Na manhã seguinte o Gil e mais dois moradores, todos negros, me procuraram em casa. Entramos num Fiat Uno, branco, rumo à loja de colchões, no Setor Pedro Ludovico. Na ida passamos por vários carros da polícia; alguns estrategicamente atravessados nos cruzamentos da Rua 90. Comprei o colchão, acomodei-o no porta-malas. Voltamos pelo mesmo caminho. No cruzamento da Avenida 136 percebemos que os carros da polícia militar fechavam o trânsito. Pelo retrovisor vi que um carro de choque vinha em alta velocidade. Os policiais apontavam armas pesadas para nós. Uma corneta ordenou:
                     
- Pare! Encosta o carro!

Paramos assustados. Estacionei em frente a uma loja de móveis. O Gil do Pagode tremia igual vara verde.

-O que eu fiz?  Juro pra vocês que não fiz nada de mal.
                 
-Desçam do carro com as mãos para cima!

Saí com a carteira de vereador na mão direita. Na parte interna tinha um enorme brasão da república.  O comandante da operação "passou um rádio" à central. Após alguns minutos de conversa entre os piliciais, fomos liberados. O Gil ainda tremia de medo.

-Quase fui fuzilado sem ver a Unidos do Aranha campeã do carnaval de rua de Goiânia.

Na Câmara, quando me preparava para subir à tribuna para reclamar do excesso da abordagem, recebi a ligação do Comandante da PM de Goiás. Educadamente me disse  que um carro com as mesmas características estava envolvido em um sequestro. Aceitei a justificativa e as desculpas feitas em nome da instituição. Volto ao conceito de chique e brega.

Às favas a frívola elegância. Sendo assim, prefiro a simplicidade das coisas do interior; a figura alegórica de um ex-voto retirada das telas do Omar Souto diz da graça da vida. Bela é a imagem de um roceiro diante de um fogão-a-lenha. Vê o fogo; viaja nas labaredas gordas e vermelhas das suas recordações. Meus cabelos cinza andam dentro da minha saudade.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net) 

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