segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Poema banguela

Estávamos, eu e o Beto Leão, num bar da Avenida Universitária. Ele, aflito, me chamara pelo celular; fui imediatamente ao seu encontro. Beto Leão foi jornalista, roteirista de cinema e escritor. Também um alcoólatra que lutou até a morte para se livrar da doença. Sou seu amigo e fã. Conheci Beto quando que estava vereador. Ele e o Eduardo Benfica, então presidente da ABD- Associação Brasileira de Documentaristas de Goiás, me ajudaram na justificativa da ideia do projeto de Festival de Cinema Brasileiro em Goiânia, depois transformada em lei.

         Caminhei alguns quilômetros para trazê-lo de volta ao mundo sóbrio. O autor de Goiás no Século do Cinema sonhava em se livrar do vício por conhecer todas as armadilhas que o fizera fraquejar. Sofria diante desse infortúnio de idas e vindas.  Chamara-me para levá-lo de volta pra casa. Seu aspecto estava horrível; roupa suja, óculos ensebados e uma conversa desconexa. Na mesa uma garrafa pela metade de cerveja e um copo americano vazio; talvez de pinga. Sentei-me ao seu lado. Entrara em surto psicótico.

Seu olhar procurou um ponto qualquer no espaço.

Este é o melhor o melhor filme do cinema brasileiro.

Não entendi nada do que ele disse. Não vi nenhuma tela de cinema; nem tinha televisão naquele bar. Percebi que a bebedeira do Beto trouxera-lhe alucinações. Ele enxergava miragens com os olhos bêbados da alma arrasada pelo álcool. Falava com Dante Alighieri, Kafka, Manuel Bandeira, Freud, Guimarães Rosa. Tudo muito confuso.

Fiquei calado esperando quando e como agir. Estava indeciso sobre o que fazer para livrar o amigo daquele inferno. De repente Beto parou de falar e me olhou firme. Seus olhos estavam molhados. Segurou as minhas mãos e suplicou:

Ajuda-me. Quero ser internado numa clínica de recuperação de alcoólatras. Você faz isso por mim?

Percebi sinceridade naquele gesto. Ele tinha certeza de que eu o ajudaria.
Duas horas depois chegamos à clínica do Dr. Salomão. Assinei os documentos em que me responsabilizara pela internação. Beto Leão ficou pouco mais de um mês internado. Aí recomeçou uma longa alternância entre a abstinência e a bebedeira. Até que em outubro do mesmo ano ele faleceu vítima de um AVC.

Anna Carolina, filha, lançou depois da morte do pai, O Diário de um Alcoolista, pela Editora Kelps. É um libelo emocionante da luta humana e solitária de Beto Leão. A tentação é uma força esmagadora da vontade fraca. Só os fortes sobrevivem ao fascínio do primeiro gole. Choro pelo amigo que não teve a força necessária.

Noutro dia, quando me dirigia à PUC TV, passei pelo mesmo bar da Avenida Universitária.  Os bêbados sorriam banguelas no carnaval.
Talvez pensem que aprenderam muito com a vida. Mas nada sobre o perigo a quem não consegue controlar o ímpeto de beber sempre mais.
 Beto Leão tinha talento e um belo texto. Apreendera tudo sobre cinema e qualquer assunto de seu interesse.
Não devia ter aprendido a beber.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.

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