sábado, 29 de dezembro de 2012 | By: Doracino Naves

A Verdadeira Luz



Pede um prato de feijão com arroz, carne de panela, ovo frito e o olhar numa secular vereda de buritis. Ver uma roça de arroz soltando cachos amarelos, prenúncio de colheita farta. Ou então um bule de café com broas de milho no frescor das manhãs na roça. Vida simples é agradecer a generosidade da vida.

         Quem me dera voltar a viver assim, sem as tribulações das cidades modernas. Esse tempo passou. Estou irremediavelmente preso pelo viver do mundo moderno que constrói corredeiras no leito do meu rio. Elas me jogam para frente sem chance de voltar atrás. Resta-me a poesia das recordações com o som alegre do pagode da roça tocado pelo ponteio da viola e o sopro da sanfona ecoando no sertão. O casal de namorados; furtivos, se amassam junto ao mourão da porteira por onde entra boi e boiada.

         Ainda brilha no tempo a lamparina acesa num casebre à beira da estrada com fantasmas ancestrais numa roda de causos. A vida na roça é simples e prodigiosa. O caipira guarda a sabedoria dos simples; por isso está mais perto do céu. Graças a Deus pela chuva, pelo sol e a colheita farta. Não é fácil viver na simplicidade; é ainda um ideal.

        Amar simplesmente, sem arranjar desculpas para isso; falar simples com o jeito direto, sábio e descontraído do homem da roça; olhar o mundo com a generosidade de Cristo; ouvir os sons da voz do Santo Espírito; se arrepiar com os acordes do Hino Nacional, viajando na história alegórica das lutas do povo; sentir o gosto da fruta madura apanhada no pé. Escrever simples.

        Eis o grande desafio de quem escreve.

        Tirar do fato cotidiano a sabedoria das palavras organizadas com o sentido da vida. As melhores coisas do mundo, inclusive a felicidade, são retiradas do jeito descomplicado de viver. A natureza oferece lições de que o deslumbramento diante dos maiores feitos da humanidade é nada comparado ao esplendor da arquitetura organizada do universo.

        O farol mais luminoso construído pelo homem é sombra diante do sol. A música dos grandes compositores resume os sons captados do universo. Nenhuma paisagem artificial rivaliza com a beleza natural da terra.

        Vida simples pede um copo d’água fresca colhida junto ao regato que corre entre as pedras do cerrado.

        Meu espírito vislumbra a claridade da Verdadeira Luz. Cristo é simples e humilde.

        O ser humano é um projeto perfeito não fosse o egoísmo, o desamor e a falta de atenção à ternura dos anjos de Deus.


Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV(www.programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
Imagem: Por do Sol na Fazenda Vale das Quimeras - Piracanjuba - Goiás - Acervo Pessoal.
segunda-feira, 10 de dezembro de 2012 | By: Doracino Naves

Anjos da esquina

 
As esquinas são universais. Também são exibidas e individualistas. Eu sempre guardei rebanhos delas impressas no papel do pensamento. Já houve tempo em Goiânia em que as melhores lojas e residências estavam nas esquinas. Ter uma casa de esquina foi- por muito tempo - sinal de prosperidade. Talvez por essa razão o desenho de um edifício começa pela esquina. Arquitetos construtores de esquinas preferem-nas ao juntar cimento, ferro e madeira para amenizar a paisagem urbana. Minhas esquinas preferidas ostentam jardins coloridos.
                 
Cada esquina tem um jeito de enfrentar o açoite do vento, o calor do sol ou a solidão da lua. Há uma insofismável dualidade nas esquinas perdidas no chocalhar ruidoso das ruas. Na soleira voltada para o sol mora a luz. Do outro lado - na contra esquina - a escuridão anunciada da tarde se esconde na tristeza do pôr-do-sol. A entrada principal de um prédio de esquina sempre dá as mãos a quem passa; no outro lado- quase sempre secundário - um paredão sem janelas impede a passagem das borboletas.
                
Não importa se as esquinas se voltam para o leste, o sul, o norte ou para o oeste; elas são majestosas. E ideologicamente definidas: sempre à direita ou à esquerda da rua; nunca no centro. Anunciam-se aos quatro ventos em variadas formas, cores e alturas. Algumas - como se fosse Jacobina, o quinto personagem de O Espelho, de Machado de Assis - embora criadas para mostrar duas almas, mostram só o exterior. Mas, mesmo a esquina mais vaidosa - do tipo que se acostuma ao vazio interior - tem espelhos a refletir os dois lados. Por essa causa a intrínseca dualidade da sua existência.
               
Gosto mais das esquinas assumidamente 'esquinas' com portas escancaradas para todos os lados. Adoro as regateiras. Triste é perceber que a insegurança dos dias de hoje fecha portas e janelas.
                 
Hoje, uma porta de entrada também serve de saída. Haverá um dia em que as esquinas voltarão a serem esquinas vaidosas e felizes com portas escancaradas para todos os lados. Então, por elas passarão homens e beija-flores. E o mundo se alegrará com as esquinas povoadas de gente.
              
A esquina é o ponto mais aparente e democrático da cidade. Não discrimina ninguém. Nela fazem ponto a prostituta; o ladrão; o assassino; o apaixonado ansioso à espera da amada; os homens de negócios; o engraxate e os anjos protetores das esquinas, encruzilhadas do ócio.
             
Bendigo as esquinas com pessoas nas calçadas a espera de um milagre. A esquina é bela e antiga desde o Coliseu de Roma, o Parthenon grego, as pirâmides do Egito com o bafo da Esfinge que, há séculos, sopra o ar seco do deserto na antecâmera do rei. Oscar Niemeyer criou milhares de esquinas curvilíneas.
             
Uma leve brisa acaricia cada esquina. O exército de anjos protege-a no solitário facho de luz ao alto da torre ou na sombra que se esconde do habitual e eterno sol poente. As esquinas, planejadas para receber gente, são muralhas da finitude. Os rios perenes, estão certos de que constância de suas suas águas molharão a terra ressequida do caminho. E, então, correm apressados para o sal dos oceanos.
             
Goiânia tem muitas esquinas e o rio Meia Ponte, de águas fugidias, que corre para o sul. Fiel ao seu destino, a minha esquina dorme e acorda sempre no mesmo lugar. Na soleira da janela aceno um lenço branco aos anjos da majestosa esquina.  

(Publicado no Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás).


               Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural (www.programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

terça-feira, 20 de novembro de 2012 | By: Doracino Naves

Preso na coleira do tempo

  Escolho a lerdeza da Avenida Cora Coralina à rapidez nervosa da Avenida 85 quando vou para o sul de Goiânia. Passa das seis da manhã. Os carros trafegam disputando a avenida como se dois corpos pudessem ocupar o mesmo lugar no espaço. E o mais chato é a pressa dos motoristas atrasados para levar o filho ao colégio. É o vale tudo do trânsito sem regras: furar o sinal; falar ao celular; ultrapassar pela direita; subir na calçada e, até, soltar uma das mãos do volante para tirar a cera do nariz com o dedo mindinho e limpar a meleca no banco. 
  
              Subo a Cora Coralina, a 40 km por hora; dá até para filosofar sobre a vida. Sigo à direita da pista para liberar os carros mais apressados que insistem em andar fora dos limites de velocidade. Correr sobre o asfalto molhado é mais perigoso. Tem motorista que não se liga nisso.

          Uma chuva fina cai sobre a cidade. No rádio a canção de Gal Costa que fala sobre a poeira do caminho. Pois é. O pó das eras também viaja comigo; bem acomodado num banco confortável.  Lá fora, na avenida da poetisa Cora Coralina passa carro, mas passa gente. Então, é nas pessoas que penso. Quão misterioso é o ser humano. O que pensam nesse momento? Ou, então, o que elas fazem na rua?

          Talvez seja possível tentar adivinhar pelo jeito de andar de cada uma; algumas vão de cabeça baixa, olhando os pés; outras, olham firme para a frente. Um carro liga a seta à esquerda e para no Colégio Emmanuel. Alunos uniformizados descem apressados. À direita, uma mulher de cabelos despenteados caminha com um cãozinho preso na coleira; o pó da estrada vai se misturar com as fezes do animalzinho branco.

      Um pouco à frente, um grupo jovens bocejam distraídos com mochilas coloridas nas costas. Passo pelo prédio grande de uma Universidade. Uma moça está sentada no banco do pátio da Universidade; parece contar ovelhas. Depois a Avenida Cora Coralina muda de nome: agora é Viela sem nome. É um trecho pequeno e estreito até cruzar a Avenida 86. Aí recebe um número, 132. Penso que seria melhor se continuasse a ser Avenida Cora Coralina.

      Em frente ao Clube dos Oficiais uma mulher, que parece ter quarenta anos, espera para atravessar a avenida na faixa de pedestre. Paro o carro. Ela leva, a tiracolo, uma bolsa enorme, dessas compradas na Feira Hippie. Acima dessa avenida de três nomes - mas que deveria ser somente Cora Coralina - está o Clube de Engenharia. Um funcionário da portaria recebe dois sacos plásticos da Padaria do Bairro. Imagino que os pães ainda estejam quentes.

        Leio na placa que a avenida novamente mudou de nome. Agora é Avenida 1.137. Dá impressão de que a Avenida Cora Coralina agora está mais valorizada. Estranha decisão da prefeitura de Goiânia que dá vários nomes e números a um mesmo logradouro.

        A chuva cai mais forte. Penso na poesia de Fernando Pessoa. Seria bem melhor se eu tivesse somente o céu por cima e a água por baixo. Chego rápido à Avenida Ricardo Paranhos; nome de poeta. Aqui tem mais gente na rua. E gente bonita que cuida do corpo correndo no canteiro central.
       Sinto-me cansado com o trôpego galopar de um homem que cospe a poeira do tempo para fora dos seus pulmões.

        Prefiro a lerdeza da Avenida Cora Coralina. São seis horas e meia. Olho para trás e tenho pena.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista Goiânia, Goiás em 17 de novembro de 2012).  
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (raízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
segunda-feira, 12 de novembro de 2012 | By: Doracino Naves

As chuvas voltaram

 

Uma rosa branca se abre em silêncio. Eu acredito no vento, nas flores e na poesia. Eu creio no Deus Vivo e Verdadeiro, o sereno arquiteto do espírito do homem e criador do mundo em expansão. A emoção de hoje está protegida por muros altos cobertos com vinhedo carregado de uvas maduras. Sou um campo limpo, às vezes nu; mas a alma está sempre coberta com folhas de árvores plantadas num brejo de águas abundantes. Minha viagem pelos solitários caminhos da evolução busca, nas alturas, o breve lampejo da luz verdadeira. Sim. Porque o exemplo do homem não pode ser o Adão caído no paraíso. A radiante estrela da manhã - o Cristo eterno- deve ser a finalidade do homem.
 
A simplicidade das coisas criadas por Deus é mais intensa do que a mais pura filosofia. Por essa razão o universo é redondinho e extraordinariamente exato. Tudo cabe dentro dele e, por maior que seja, Ele cabe dentro do coração do homem. Diariamente me desdobro em pétalas curvilíneas de grata oração. As curvas das ondas magnéticas descobertas pela física são caprichos do destino a mostrar o poder do sol. Por que chorar diante da adversidade se um dia voarei rumo às estrelas; pontos brilhantes colocados no céu para que meus olhos se voltem para o alto, onde todas as coisas são perfeitas e perenes.
 
Mesmo nas contrações do olhar, sou pleno. De essência azul celeste; a cor das vestes de Deus. Preciso ser inteiro para merecê-Lo. Uma espada flamejante - colocada nas mãos de anjos alados - brilha na eterna noite do cosmo a me proteger das armadilhas da caminhada. Eles também são guardiões que abençoam as minhas escolhas diárias. A todo minuto tenho que decidir sobre um monte de sonhos. Devo compartilhá-los com o próximo.
 
Dou aos amigos tudo o que levo nas mãos, exceto as minhas memórias. Reparto com os pássaros até as sementes de milho que levo para o plantio. Certamente que - num belo dia - eles voltarão para cantar na colheita. E isso me enche de esperança.
 
A crônica - esse estilo bem brasileiro - não é um lugar escondido nas sombras da mata. Ao contrário, é uma floresta de emoções guardadas na luz da memória. E, no brilho da mente, igual à semente do milho, brota nas espigas do ve[nto]rbo.
 
Eu acredito nas flores e na crônica poética. Mais uma rosa branca se abre no Vale das Quimeras. As chuvas serôdias voltaram para molhar a terra da promessa. As andorinhas voejam alegres sobre a plantação. Eu acredito no vento que venta.
 
(Publicada no Jornal Diário da Manhã - DM-Revista - Goiânia - Goiás em 10 de novembro de 2012).

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (programaraízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
sábado, 27 de outubro de 2012 | By: Doracino Naves

Casinha pequenina



Filmes são sínteses. Assim caminha a humanidade, cujo título em inglês é Giant – gigante – é uma adaptação da obra de Edna Ferber, autora de Palácio de Gelo, que disse certa vez: “ser uma solteirona foi grande como morrer por afogamento - uma sensação muito agradável quando você deixa de lutar”. Uma característica da obra literária de Ferber é sempre destacar um personagem secundário que enfrentou discriminação étnica. Ela acreditava que as pessoas não tão bonitas têm o melhor caráter. Esse filme é um libelo do racismo dos americanos do Texas contra os mexicanos que migraram para os Estados Unidos, na primeira metade do século passado.
 
Dirigido por George Stevens, Assim Caminha a humanidade teve dois roteiristas: Fred Guiol e Ivan Moffat, amigo de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Guiol e Moffat reproduziram muito bem a saga americana que construiu o seu império sustentado, principalmente, pelos trabalhadores africanos e latinos. Mesmo assim, o americano tradicional considera-nos uma raça inferior. A primeira vez que vi esse filme foi no início dos anos sessenta, no Cine Regina, na Vila Nova. O que mais me impressiona no filme é - em primeiríssimo lugar - a beleza divina de Elizabeth Taylor que se preparava para iluminar Cleópatra nas telas do mundo; Rock Hudson, com quase dois metros de altura; a interpretação incomparável de James Dean e o caráter dos personagens mexicanos representados por Sal Mineo.
 
Hoje, passados tantos anos, imagino o motivo que me fez gostar tanto desse filme a ponto de elevá-lo a um dos melhores filmes que já vi, em todos os tempos. Penso que foi, principalmente, pela abordagem antirracial do romance de Edna Ferber. Toda essa questão eu vivia naquela Vila Nova, povoada, inicialmente, por nordestinos e trabalhadores vindos do interior de Minas Gerais. Havia, portanto, um liame entre a ficção das telas e a plangente realidade em que vivíamos.
 
Já que a crônica de hoje fala sobre cinema é bom lembrar dois bons filmes brasileiros desse período: Chamas no Cafezal – de 1954 e Casinha Pequenina - feito em 1963 - um dos filmes mais caros de Mazzaropi em que marca a estreia de Tarcísio Meira no cinema. Certamente que o valor gasto no filme não foi por causa do salário do, então, jovem ator.
 
 
No tumulto das noites de domingo no Cine Regina, onde a fila dobrava quarteirões, eu de cá você de lá entregando o seu ingresso ao porteiro. Não havia esperança de um encontro antes do filme; nem sala de espera havia no cinema da Vila. Só sujeira e pulgas indiscretas a interromper a magia dos filmes; sínteses da histórica caminhada do homem nessa casa pequenina.
 
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DM-Revista - Goiânia, Goiás em 27 de outubro de 2012).
 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
sábado, 20 de outubro de 2012 | By: Doracino Naves

Assim caminha a humanidade

 
Fuço um armário de madeira onde guardo filmes antigos. Revirar objetos guardados é coisa de gente que já está passando da hora. Descubro que os meus filmes preferidos estão gravados em fitas videocassete.
 
- Onde está o nosso videocassete?
 
- Isso nem existe mais. Agora é DVD. Outra coisa: joga fora essas fitas com músicas que o som do seu carro não é toca-fitas; é toca CD. Tem uma pessoa aqui no prédio que transforma esse lixo em coisa atual. Pede para ele fazer isso. Assim você vai entrar na modernidade.
 
Olhei mais uma vez a coleção de filmes. Atentei-me ao tempo que passa inexorável igual às águas do rio que nunca voltam. Para onde foi aquele menino que empinava papagaios? Cadê o adolescente que colecionava gibis. Para onde foi a alegria juvenil de quem se divertia com as trapalhadas de Peninha, personagem que Walt Disney criou para atazanar a vida do Pato Donald. Minha coleção está empoeirada e decadente. Eu também.
 
Paul Auster, escritor americano, disse em A Invenção da Solidão: “Envelhecer é a coisa mais estranha que pode acontecer a um garotinho”. Volto aos filmes. Filmes são sínteses. Na primeira metade do século passado o cinema foi o símbolo do Monte Olimpo. Os atores, deuses... da sétima arte.
 
Pobres filmes esquecidos. Ricas histórias guardadas no armário escuro. Elas precisam, literalmente, de luz para falar. A Sinfonia Pastoral, de André Gide, prêmio Nobel de Literatura de 1947, foi o primeiro a aparecer entre meus dedos: é a história de uma menina cega criada entre pastores de ovelhas. Depois, já moça, recupera a visão. Mas, se depara com a necessidade de conviver com o amor e o ódio dos pais adotivos.
 
Apalpo com carinho a caixa do filme Palmeiras Selvagens, de William Faulkner, feito em que 1949. Eu nasci nesse ano. Alguns anos depois, em 1956, Faulkner disse em uma entrevista que o artista não tem importância; só é importante o que ele cria. Foi ainda mais contundente quanto à literatura: Se Homero, Balzac e Shakespeare ainda vivessem, os editores não precisariam de mais ninguém para escrever. Ele ainda afirma que todos os escritores repetem a mesma coisa.
 
Meu indicador desliza sobre os títulos de alguns clássicos: A dama das Camélias(Dumas); A Revolução dos Bichos (George Orwel); De Salto Alto (Pedro Almodóvar); Fausto (adaptação da obra de Göethe); Germinal (Emile Zola); Hamlet (Shakespeare); O caçador de pipas (Khaled Hosseini); Os Miseráveis e Corcunda de Notre Dame (Victor Hugo); O crime do Padre Amaro(Eça de Queiroz); O nome da rosa(Umberto Eco) com Sean Connery e O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry.
 
Tem outros filmes dentro do armário. Mas, o que eu procuro é Crime e Castigo, filme russo feito em 1969, dirigido por Joseph Sargent. Essa é a melhor adaptação do livro de Dostoiévski. A história se passa em São Petersburgo, na Rússia, por volta de 1830.  Quero ver o filme para compará-lo com a releitura que faço do livro. Aquele armário antigo me mostra outras preciosidades do cinema.
 
Duas Mulheres - estrelado por Sophia Loren - abre um sorriso enigmático. Esse filme, feito em 1960, ambientado durante a Segunda Guerra Mundial, foi dirigido por Vittorio de Sica.Sophia me faz lembrar o poeta Mario Quintana que, bem humorado, contou numa das 130 historinhas adaptadas por Juarez Fonseca, que caiu da cama porque sonhara com a fogosa atriz italiana.
 
No canto esquerdo do armário – chamando a minha atenção para revê-lo - está o filme Assim caminha a humanidade, com Rock Hudson, Elizabeth Taylor e James Dean.
 
(Publicado no Jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV(www.raízestv.net). Escreve aos sábado no DMRevista.
sábado, 13 de outubro de 2012 | By: Doracino Naves

Ponto Azul



 No mercado da Vila Nova tinha o bar Ponto Azul ao lado uma barbearia e cadeiras de engraxates espalhadas pela calçada. Fui um destes. Era o jeito de ganhar uns trocados para o filme de domingo no cinema. O dinheiro era pouco porque só engraxávamos aos sábados e domingos. Nos dias de semana era aula no grupo escolar Murilo Braga. Em frente ao mercado havia a feira livre com casebres de madeiras que serviam a negócios estranhos: casa de mulheres; tiro ao alvo; jogos de argola; mulher barbada; homem que, no meio da fumaça virava macaco e balançava com força as grades que uma cela improvisada. Meus olhos se voltavam para a putaria que funcionava no meio dessa bagunça. Alguém me disse: olha com os olhos e lambe com a testa. Nunca entendi essa expressão popular.
                   
                        Nas madrugadas de domingo a Praça da Vila Nova acordava entre gritos e burburinhos do despertar dos feirantes e suas carroças. Nenhum cavalo relinchava; cumpria a sina em silêncio; de cabeça baixa. Havia uma multidão com os olhos cansados das ruas de terra que abriam os braços ao infinito. A Goiânia dessa época era pura e sem limites. O mundo de sonhos da cidade em construção transbordava a sua volta. Os fios da rede de energia elétrica - colocados sobre postes de aroeira retorcida - pareciam teias de aranha a prender quem chegava à nova capital disposto a uma vida próspera. A magia do cinema nos levava a lugares distantes. O filme o Velho e o Mar mostrou a crueza das águas e a solidão do homem perdido no seu drama.  
                  
                        O mar e o simbolismo de um barco saindo do porto é a figura perfeita da liberdade. Com essa imagem é possível viajar além do que vemos. Feliz o pioneiro que rompeu os limites do seu mundo em busca de outras possibilidades. Um retrato da solidão é a pessoa que passa parte do seu tempo numa casa sem olhar para o céu. As cidades grandes são obstáculos que impedem a alma de ver mais longe. A maioria, presa pelo que construiu na terra, anda pela mesma estrada igual a uma lagarta que desconhece que o seu destino lhe dará asas de borboleta. Na condição humana só o despertar da fé e a esperança são capazes de romper o limite das crenças e convicções pessoais. Talvez a maior aventura da terra seja viajar para dentro de nós.
                 
                         Ainda hoje acredito na mágica que transformou aquele homem em um macaco na confusa feira da Vila Nova. Acredito em muita coisa que amanhã, certamente, vou descrer. Mudo de opinião sobre muitos aspectos do viver. Essas descobertas movimentam meu ser. Mas a imagem do homem na luta egoísta me sobressalta. Só a decodificação da vida cristã me acalma até sentir um enlevo a me conduzir ao encontro com outra pessoa. Penso que o princípio dual do ser humano o faz, ao mesmo tempo, único e plural; é assim quando sai de dentro de si para caminhar com o outro. É nessa condição que se vê nas coisas e no próximo. Eu tenho necessidade de sentir para escrever. O coração ferve o sangue nas veias.
                  
                        Se tiver sumo, escrevo. Essa crônica sai como se uma personagem ditasse cada palavra. O fim, às vezes, surpreende. Escrevo lentamente, à conta-gotas. Dizem que um bom escritor escreve rápido.
                  
                        Ernest Hemingway compôs em quarenta dias um dos seus grandes romances, O sol também se levanta. Isso aconteceu numa viagem com a esposa Hadley durante suas férias pela Espanha e França. Ele foi tão danado para escrever que, num só dia, fez três primorosos contos: Os matadores, Dez índios e Hoje é sexta-feira. Outro grande escritor - este é brasileiro nascido em Iporá, Goiás - Edival Lourenço, escreveu Pela Alvorada dos Nirvanas numa noite.
                       Sou um catador de imagens.                     
                       Fecho os olhos. Vejo um ponto azul boiando no espaço escuro da mente; transformo-me num minúsculo e pálido ponto azul a vagar no infinito espaço sideral.
                      Só então as palavras chegam à mente.
                                           
                Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raízesjornalismocultural, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012 | By: Doracino Naves

Dança de salão

Lembro que encostado numa banca de raspadinha - gelo raspado por uma espécie de enxó - com adição de groselha - um homem olhava decidido para as bandas da Liga dos Amigos da Vila Nova. Mais tarde me contaram que a raspadinha vermelha lembraria a ele o Campari. De forma que o abstêmio tomava ‘raspadinha’ de groselha ao invés da bebida alcóolica. Menos mal. A verdade é que, embora exagerando na substituição do álcool por essência escarlate, Hermegildo estava pronto para a matinê dançante no salão da Liga.
           
Vestira seu infalível terno marrom; gravata borboleta azul com uma flor vermelha na lapela; cabelo partido ao meio à Amigo da Onça. Com o peito estofado se mostrava, orgulhoso, às damas. Mas, não percebi o interesse de nenhuma mulher que passava por ele. Decerto elas não imaginavam que se tratava de um cavalheiro dançarino. Pensei isso, sem ao menos saber se ele era bom de dança. Imaginei que essa seria a realidade. Ora bolas, então, por qual razão alguém se vestiria dessa forma sob o sol causticante de outubro; com o olhar firme como se estivesse às vésperas de uma estreia.
             
Alguém me disse que Hermegildo era analfabeto, mas um grande dançarino. O fato de ser analfabeto não fizera nenhuma diferença sobre o que eu pensava dele. Passei a admirá-lo porquê dançava bem e eu não. Duro como uma estaca eu tentava me fazer ágil nos movimentos da dança e, nada. Mas, curioso, aprendi a dançar bolero - somente bolero - nas matinês dançantes de domingo nas casas daquela Vila Nova de sonhos. Resolvi chegar mais perto do dançador. Perguntei-lhe qual o segredo para dançar bem. Primeira regra: ser um perfeito cavalheiro respeitando as donzelas e seus acompanhantes. Segunda: fazer o corpo seguir os mágicos movimentos da música. Dentro de um salão de dança, disse-me, meus pés se movimentam ao ritmo das notas musicais.
              
Desde esse dia aprendi que o conhecimento intelectual não é o bastante; o coração deve ser tocado pela graça de Deus. Vi aquele homem assim: agraciado pela arte da dança e da música. Perfeitas criações divinas. A ponto de fazer de Orfeu um exímio tocador de lira a reanimar os argonautas na célebre viagem de Jasão. Até as brigas cessavam quando Orfeu tocava. Também rendo graças a Davi, o suave cantor de Israel, que tocava o coração de Deus com sua harpa. Hermegildo, o dançarino, confessou que, se pudesse, viveria para sempre dentro de um salão de dança.
              
Tenho a alegria de olhar para trás e perceber o romantismo medieval das danças de salão. Ando, a toda hora, com minhas lembranças. Meus pensamentos são beliscados pelas impressões da vida. Hoje, o som do bolero me pede para recomeçar. Recomeço na necessária desconstrução das emoções. A orquestra celestial – com o Maestro a oriente de um imenso salão - me espera com músicas suaves.

(Crônica publicada no jornal Diário da Manhã -DM-Revista - Goiânia - Goiás em  06 de outubro de 2012).
    
               Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.  
            
domingo, 30 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Tatu cego

 
Aquele homem tinha o rosto cavoucado. Suas covas, exageradamente puxadas para dentro,semelhavam as de um judeu que passara pelo holocausto nazista. Ou a buracos cavoucados na rocha por um tatu cego. A natureza, indiferente às dores do homem, não se dobra às suas angústias. Segue o seu destino de animar o planeta. Os beija-flores, indiferentes ao homem de rosto cavoucado, tilintam suas asas de cobre ao redor das flores. O trinca-ferro desrespeitoso zune o seu canto na imensidão. Mais alto, um bando de urubus espreita o que acontece lá embaixo. O urubu é capaz de sentir o cheiro da morte à distância. Nessa hora, um urubu-rei, tal qual o homem que se agrupa nos velórios, chama outros urubus para espiar a morte. O homem de rosto cavoucado, com a cabeça inclinada para trás, é o retrato do inexorável fim. Mas, Ditão, embora doente, continua vivo.
Chegara há três semanas ao garimpo de Lavrinhas, no interior de Goiás, onde se acomodou com outros garimpeiros em um tosco rancho de palha. Viajara para tentar a sorte no garimpo. E, quem sabe, realizar um sonho: colocar, na frente da boca, dois dentes de ouro. O ouro da alegria. Queria mostrar a sua prosperidade. Por que não? Lembrou, magoado, que padre José lhe fizera um demorado sermão antes da viagem. Assim mesmo, deu de ombros e se foi deixando sua mulher e um casal de filhos pequenos em Hidrolândia.
Ainda ontem começara a se sentir mal; com periódicas ondas de calor a lhe causar calafrios terríveis. A palidez da pele amarelou mais com a chegada dos suores intermitentes. Seu corpo geme de dor. Os colegas garimpeiros tentam aliviar o mal com chás e rezas. A febre vai e volta com surtos esporádicos a lhe cozinhar o fígado e o baço.
Nos gemidos do garimpeiro doente havia um tom de blasfêmia por causa do mau agouro do padre. Em outros momentos orava com fé. De modo que a blasfêmia e a oração estavam carregadas de explosões atômicas a fustigar a sua alma.
Nem os chás e rezas aliviam a doença inesperada. Está muito cansado; cochilou por um instante. Sonhou com a mulher e os filhos embaixo de um pé de jabuticaba. Acordou com o próprio grito. Ouviu através da indiscreta parede de palha trançada: “É... ele vai morrer, pegou a caladinha”. Estremeceu de angústia ao ouvir isso. Saltou da cama, cambaleando foi de um lado ao outro do rancho. Chegou à porta que estava aberta. O ar parecia parado. Estranhou o silêncio aterrador que o cercava.
Precisava acordar para tirar da cabeça aquele sonho terrível. O ronco de um garimpeiro o trouxe à realidade. Começou a perceber que não fora sonho o que ouvira. Então era verdade: estava com a terrível maleita. A opressão mental se transformou em dois blocos de pedras gigantescos a esmagar a sua esperança. Sentiu-se nu e descalço no meio de um frio pântano negro. Começara o seu purgatório. O céu desceu até a sua cabeça com pesadas nuvens de angústia. Não daria tempo de chegar ao hospital Samaritano, distante, pelo menos, vinte léguas do garimpo. Estava fraco; o ar lhe passava arranhando os pulmões.
Pôs as mãos sobre a cintura. Estendeu os polegares para frente, em atitude de submissão. Os outros dedos apertaram o baço num gesto desesperado de retirar à unha a sua dor. Sumiu na noite sem lua. Nenhum garimpeiro percebera a sua ausência. Amanheceu.
Ninguém sabia o que acontecera ao companheiro de rosto cavoucado. Reunidos, chamaram por ele. Viram um bando de urubus voando alto, bem alto. Arautos da morte.
O chão tremeu sob os pés dos homens que também começaram a ficar com seus rostos cavoucados. Talvez fosse um bando de tatus cegos a cavoucar as rochas do tempo.
 
(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM-Revista - Goiânia - Goiás em 29 de setembro de 2012)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV(www.programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
domingo, 23 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Chuva das flores



É sobre as águas que este ano nunca chegam que chamo. Vem, chuva, acompanhada pelo vento fraco para não arrancar o teto das casas humildes. E ao ventar desapeie das árvores as folhas secas, carentes de água, a rangerem na minha madrugada. O vento, qual fantasma que nunca dorme, rola as folhas em movimentos circulares pelo asfalto. Peço que dentro dos redemoinhos saiam anjos a zelar o sono da minha amada. Que a chuva temporã calem as folhas derramadas no asfalto. Dorme, amor.
 
Água, vem, cubra com sua roupa translúcida as assanhadas árvores peladas das ruas de Goiânia. Elas se despiram das folhas, na voluptuosa passagem antes da primavera; na gestação das eras. E o vento sul traz nuvens, poeira, bafos de calor salpicados de tímida umidade. O canto da cigarra ecoa forte no ar pedindo chuva. Outras, trepadas nos galhos nus, formam uma orquestra desafinada. Os trovões anunciam a chegada da chuva das flores. Das de manga, caju, pequi, araticum, bacupari.
 
Nesses tempos inseguros, a precisão das chuvas rompe as barreiras da imprudência do homem que constrói prédios e asfalto impedindo a terra de respirar. Lá vem a chuva das flores como se fosse um mar desorientado a molhar nossa alma seca de amor ao próximo. Diz a cultura popular que a chuva das flores traz fartura; amacia o pasto do nosso bife; molha as entranhas do ovo nosso de cada dia; dá água às frutas. Mas, arranjo do tempo, derruba as flores do ipê. A sorte é que, murchas, elas adubam a terra para confirmar o florir do ano que vem.
 
Vem, chuva, vem! Bate os seus pingos nas janelas dos apartamentos. Lava a cara de pau dos políticos e tire o pó do espírito de porco. Chuva chega mais perto, tira o zinabre do tempo para que o nosso olhar vá mais longe sem as partículas impuras do ar. Vento uive à vontade por entre as frestas das janelas semiabertas. Seque os beijos dados sem amor.
 
Venha logo, chuva das flores, traga o ronco das antigas trovoadas com os relâmpagos a vazar, com suas luzes, as cortinas do quarto. Molhe a mangueira do quintal. Mas, peço ao vento e chuva das flores, venham calmos como se fosse uma tropa de cavalos mansos cavalgados por homens sem pressa.
 
 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural(www.raízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
quarta-feira, 19 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Carta de náufrago

 Agora que o mormaço de setembro zumbe nos ouvidos, misturando a linguagem da seca e do calor brabo, o olhar se volta para o alto em busca das nuvens que o vento levou para outros céus.  O amarelo do sol, sugado pelos ipês floridos, tinge esse cenário de quarenta graus. Sou o centro das minhas coisas; não o meio do mundo, mas o ponto dentro do círculo das emoções entrincheiradas nas frestas da alma. Há sempre uma fina cortina a trespassar o passado. As vibrações delirantes do tempo seco me faz imaginar coisas: uma bailarina dança indiferente à corte do cisne.
 
Nas ondas flamejantes do sol cáustico o balé renascentista serpenteia dentro da minha realidade. A espera da chuva para o mês que vem enche de esperança o lavrador da terra. Debruçado à margem seca ele vê o Meia Ponte perdido no seu leito esponjoso. Os barrancos secos clamam por chuva. Muito se perdeu nesse rio de águas inconstantes e lambuzadas: juras de amor; cartas jogadas em seu leito como se fossem mensagens de náufrago; mentiras e verdades faladas nas horas incertas; os discursos idealistas de Haroldo Gurgel, Alfredo Nasser, Pedro Ludovico e as inflamadas falações no palanque das Diretas Já; os gritos de gol do Tigre da Vila ainda ecoam nos remansos do rio.                  
 
Os fantasmas ressuscitados nos peixes beliscam o lixo flutuante que, certamente, no seu destino de dejeto, há de encontrar um porto antes do oceano. Talvez acompanhado pelos habitantes das trevas e do caos: ratos, baratas e aranhas.
            
 Muito se perdeu nas curvas deste rio. Os quatro ventos, incontroláveis, sopram as águas de quem mora em Goiânia. E os ventos, nesse sentido, simbolizam o redemoinho da vida que corre inexorável como as águas do meu rio. A cidade cresce estendendo os seus braços em todas as direções. Ainda vai crescer muito. Tem um poema de Gilberto Mendonça Teles que diz assim: “Certamente os braços continuarão crescendo. O tato se tornará mais sensível. E os dentes crescerão tanto que a boca ficará sempre aberta, um túnel”.
         
 Já que falei de Gilberto, aqui vai outro poema, bem ao gosto de quem se dedica a escrever: “Eu caminho seguro entre palavras e páginas desertas. Nas retinas: sonhos de coisas claras e a lição de outras coisas que invento para o só testemunho de minha construção imaginária de pedra sobre pedra e cimento e silêncio”.
            
Pois é. Melhor ficar calado diante da eloquência dos versos de Mendonça Teles.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás em  15 de setembro de 2012)
       
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraizes.net). Escreve aos sábado no DMRevista.




sábado, 8 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Céu risonho




 Não há nenhuma nuvem acima dos prédios do centro de Goiânia. O céu está limpo nessa madrugada. É mês de setembro, cinco horas da manhã. O barulho das turbinas do avião subindo invade o meu sono. Depois que ele passa  ouço o canto demorado de um galo. Custo a acreditar nos meus ouvidos porque não mais existem galos por aqui que a falta de quintais não deixa. Esfrego os olhos para acordar. Na sacada, espremido na pequenez do lugar, entre o varal de roupas e a parede baixa, aparece Simão, o Sem Caráter. Seu corpo etéreo balança com o vento chiando entre as peças de roupas e o lençol branco estendido no espectro da madrugada. Dá um calafrio, rápido talvez provocado pelo ar fresco que sopra a pedir mais zelo desse escriba a Simão.
         
De vez em quando ele volta da sua recôndita morada para me seduzir a escrever coisas do seu agrado. Pergunta-me se escutei o canto do galo. Faço-me de desentendido. Ele recomeça a sua conversa mole. Simão é sempre assim: antes de eu responder ele emenda as suas pataquadas. Comprara o galo numa loja de aves da Avenida Castelo Branco, em Campinas. O nome do galo é Conrado. Jura que é um galo cantor; canta dois minutos sem parar. É grande, bonito; todo branco,  bico fino, afiadíssimo. E para me agradar diz que a cauda dele é toda vermelha, da cor do Vila Nova.
           
Havia um tom de ironia em suas palavras; imagino que se refere à posição rabeira do meu time fora de série. Simão garante que comprara o galo também para alertar aos moradores do Centro que o dia deveria ser de vigília quanto às hipocrisias e injustiças. E completou esperançoso: - Ele vai fazer nossos vizinhos se lembrarem da vida rural. O galo canta alto para avisar às galinhas que o chefe está vivo e no comando do terreiro. Simão se tornara uma galófilo irritante.
          
Percebendo minha impaciência a ouvir essa história de galo musical, Simão desapareceu entre os prédios da Rua 20. Um cheiro suave de rosas foi se diluindo na fluídica manhã.           
           
Comemoro a presença de Simão quando começo a escrever. Acho que a entrada dos personagens numa criação artística deve ser celebrada discreta e humildemente, pois é o começo de alguma coisa. O agradecimento deve ser guardado para a saída, quando o texto termina.
             
A crônica poética me ajuda a pensar na realidade desvinculada do presente irônico dos tempos de hoje. Uma foto, por exemplo, mostra uma inocência irônica, passiva e ilusória. A ficção permite que os personagens se materializem diante de nós como nossos contemporâneos; sem as amarras do texto macarrônico.  
             
Desperto dessa passagem com a garganta seca provocada pela baixa umidade. O canto do galo ecoou mais uma vez. Soa como se fosse o toque de trombeta sobre a cidade adormecida.  Vigiai, ora, pois! Conheço pouco da grande corrente do misticismo judaico, mas essa conversa de galo está chegando ao fim sem nuvem, mas com o céu risonho de um azul translúcido.
            
                
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraízes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.