segunda-feira, 8 de outubro de 2012 | By: Doracino Naves

Dança de salão

Lembro que encostado numa banca de raspadinha - gelo raspado por uma espécie de enxó - com adição de groselha - um homem olhava decidido para as bandas da Liga dos Amigos da Vila Nova. Mais tarde me contaram que a raspadinha vermelha lembraria a ele o Campari. De forma que o abstêmio tomava ‘raspadinha’ de groselha ao invés da bebida alcóolica. Menos mal. A verdade é que, embora exagerando na substituição do álcool por essência escarlate, Hermegildo estava pronto para a matinê dançante no salão da Liga.
           
Vestira seu infalível terno marrom; gravata borboleta azul com uma flor vermelha na lapela; cabelo partido ao meio à Amigo da Onça. Com o peito estofado se mostrava, orgulhoso, às damas. Mas, não percebi o interesse de nenhuma mulher que passava por ele. Decerto elas não imaginavam que se tratava de um cavalheiro dançarino. Pensei isso, sem ao menos saber se ele era bom de dança. Imaginei que essa seria a realidade. Ora bolas, então, por qual razão alguém se vestiria dessa forma sob o sol causticante de outubro; com o olhar firme como se estivesse às vésperas de uma estreia.
             
Alguém me disse que Hermegildo era analfabeto, mas um grande dançarino. O fato de ser analfabeto não fizera nenhuma diferença sobre o que eu pensava dele. Passei a admirá-lo porquê dançava bem e eu não. Duro como uma estaca eu tentava me fazer ágil nos movimentos da dança e, nada. Mas, curioso, aprendi a dançar bolero - somente bolero - nas matinês dançantes de domingo nas casas daquela Vila Nova de sonhos. Resolvi chegar mais perto do dançador. Perguntei-lhe qual o segredo para dançar bem. Primeira regra: ser um perfeito cavalheiro respeitando as donzelas e seus acompanhantes. Segunda: fazer o corpo seguir os mágicos movimentos da música. Dentro de um salão de dança, disse-me, meus pés se movimentam ao ritmo das notas musicais.
              
Desde esse dia aprendi que o conhecimento intelectual não é o bastante; o coração deve ser tocado pela graça de Deus. Vi aquele homem assim: agraciado pela arte da dança e da música. Perfeitas criações divinas. A ponto de fazer de Orfeu um exímio tocador de lira a reanimar os argonautas na célebre viagem de Jasão. Até as brigas cessavam quando Orfeu tocava. Também rendo graças a Davi, o suave cantor de Israel, que tocava o coração de Deus com sua harpa. Hermegildo, o dançarino, confessou que, se pudesse, viveria para sempre dentro de um salão de dança.
              
Tenho a alegria de olhar para trás e perceber o romantismo medieval das danças de salão. Ando, a toda hora, com minhas lembranças. Meus pensamentos são beliscados pelas impressões da vida. Hoje, o som do bolero me pede para recomeçar. Recomeço na necessária desconstrução das emoções. A orquestra celestial – com o Maestro a oriente de um imenso salão - me espera com músicas suaves.

(Crônica publicada no jornal Diário da Manhã -DM-Revista - Goiânia - Goiás em  06 de outubro de 2012).
    
               Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.  
            

0 comentários:

Postar um comentário