sábado, 13 de outubro de 2012 | By: Doracino Naves

Ponto Azul



 No mercado da Vila Nova tinha o bar Ponto Azul ao lado uma barbearia e cadeiras de engraxates espalhadas pela calçada. Fui um destes. Era o jeito de ganhar uns trocados para o filme de domingo no cinema. O dinheiro era pouco porque só engraxávamos aos sábados e domingos. Nos dias de semana era aula no grupo escolar Murilo Braga. Em frente ao mercado havia a feira livre com casebres de madeiras que serviam a negócios estranhos: casa de mulheres; tiro ao alvo; jogos de argola; mulher barbada; homem que, no meio da fumaça virava macaco e balançava com força as grades que uma cela improvisada. Meus olhos se voltavam para a putaria que funcionava no meio dessa bagunça. Alguém me disse: olha com os olhos e lambe com a testa. Nunca entendi essa expressão popular.
                   
                        Nas madrugadas de domingo a Praça da Vila Nova acordava entre gritos e burburinhos do despertar dos feirantes e suas carroças. Nenhum cavalo relinchava; cumpria a sina em silêncio; de cabeça baixa. Havia uma multidão com os olhos cansados das ruas de terra que abriam os braços ao infinito. A Goiânia dessa época era pura e sem limites. O mundo de sonhos da cidade em construção transbordava a sua volta. Os fios da rede de energia elétrica - colocados sobre postes de aroeira retorcida - pareciam teias de aranha a prender quem chegava à nova capital disposto a uma vida próspera. A magia do cinema nos levava a lugares distantes. O filme o Velho e o Mar mostrou a crueza das águas e a solidão do homem perdido no seu drama.  
                  
                        O mar e o simbolismo de um barco saindo do porto é a figura perfeita da liberdade. Com essa imagem é possível viajar além do que vemos. Feliz o pioneiro que rompeu os limites do seu mundo em busca de outras possibilidades. Um retrato da solidão é a pessoa que passa parte do seu tempo numa casa sem olhar para o céu. As cidades grandes são obstáculos que impedem a alma de ver mais longe. A maioria, presa pelo que construiu na terra, anda pela mesma estrada igual a uma lagarta que desconhece que o seu destino lhe dará asas de borboleta. Na condição humana só o despertar da fé e a esperança são capazes de romper o limite das crenças e convicções pessoais. Talvez a maior aventura da terra seja viajar para dentro de nós.
                 
                         Ainda hoje acredito na mágica que transformou aquele homem em um macaco na confusa feira da Vila Nova. Acredito em muita coisa que amanhã, certamente, vou descrer. Mudo de opinião sobre muitos aspectos do viver. Essas descobertas movimentam meu ser. Mas a imagem do homem na luta egoísta me sobressalta. Só a decodificação da vida cristã me acalma até sentir um enlevo a me conduzir ao encontro com outra pessoa. Penso que o princípio dual do ser humano o faz, ao mesmo tempo, único e plural; é assim quando sai de dentro de si para caminhar com o outro. É nessa condição que se vê nas coisas e no próximo. Eu tenho necessidade de sentir para escrever. O coração ferve o sangue nas veias.
                  
                        Se tiver sumo, escrevo. Essa crônica sai como se uma personagem ditasse cada palavra. O fim, às vezes, surpreende. Escrevo lentamente, à conta-gotas. Dizem que um bom escritor escreve rápido.
                  
                        Ernest Hemingway compôs em quarenta dias um dos seus grandes romances, O sol também se levanta. Isso aconteceu numa viagem com a esposa Hadley durante suas férias pela Espanha e França. Ele foi tão danado para escrever que, num só dia, fez três primorosos contos: Os matadores, Dez índios e Hoje é sexta-feira. Outro grande escritor - este é brasileiro nascido em Iporá, Goiás - Edival Lourenço, escreveu Pela Alvorada dos Nirvanas numa noite.
                       Sou um catador de imagens.                     
                       Fecho os olhos. Vejo um ponto azul boiando no espaço escuro da mente; transformo-me num minúsculo e pálido ponto azul a vagar no infinito espaço sideral.
                      Só então as palavras chegam à mente.
                                           
                Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raízesjornalismocultural, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.

1 comentários:

celioantonior disse...

Em um sábado em Caldas Novas, comprei o DM para fugir das piscinas de água quente e do barulho agregado. Sua crônica foi a melhor parte do dia, o Bar Ponto Azul estava esquecido há mais de vinte anos num cantinho da minha mente, bem como as outras recordações que você reviveu. Dos meus 56 anos acho que vivi só 6 fora da Vila Nova, e quando criança, sempre que ganhava algum dinheiro ia no Ponto Azul comprar bolo de duas cores e na minha pequenez o Bar era imenso tal qual um shopping de doces, bolos e balinhas e não apenas as duas ou três portas da realidade.
O restante de sua crônica é de uma beleza impar. Parabéns!

Célio - Um amigo de D. Laudelina.

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