segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Poema banguela

Estávamos, eu e o Beto Leão, num bar da Avenida Universitária. Ele, aflito, me chamara pelo celular; fui imediatamente ao seu encontro. Beto Leão foi jornalista, roteirista de cinema e escritor. Também um alcoólatra que lutou até a morte para se livrar da doença. Sou seu amigo e fã. Conheci Beto quando que estava vereador. Ele e o Eduardo Benfica, então presidente da ABD- Associação Brasileira de Documentaristas de Goiás, me ajudaram na justificativa da ideia do projeto de Festival de Cinema Brasileiro em Goiânia, depois transformada em lei.

         Caminhei alguns quilômetros para trazê-lo de volta ao mundo sóbrio. O autor de Goiás no Século do Cinema sonhava em se livrar do vício por conhecer todas as armadilhas que o fizera fraquejar. Sofria diante desse infortúnio de idas e vindas.  Chamara-me para levá-lo de volta pra casa. Seu aspecto estava horrível; roupa suja, óculos ensebados e uma conversa desconexa. Na mesa uma garrafa pela metade de cerveja e um copo americano vazio; talvez de pinga. Sentei-me ao seu lado. Entrara em surto psicótico.

Seu olhar procurou um ponto qualquer no espaço.

Este é o melhor o melhor filme do cinema brasileiro.

Não entendi nada do que ele disse. Não vi nenhuma tela de cinema; nem tinha televisão naquele bar. Percebi que a bebedeira do Beto trouxera-lhe alucinações. Ele enxergava miragens com os olhos bêbados da alma arrasada pelo álcool. Falava com Dante Alighieri, Kafka, Manuel Bandeira, Freud, Guimarães Rosa. Tudo muito confuso.

Fiquei calado esperando quando e como agir. Estava indeciso sobre o que fazer para livrar o amigo daquele inferno. De repente Beto parou de falar e me olhou firme. Seus olhos estavam molhados. Segurou as minhas mãos e suplicou:

Ajuda-me. Quero ser internado numa clínica de recuperação de alcoólatras. Você faz isso por mim?

Percebi sinceridade naquele gesto. Ele tinha certeza de que eu o ajudaria.
Duas horas depois chegamos à clínica do Dr. Salomão. Assinei os documentos em que me responsabilizara pela internação. Beto Leão ficou pouco mais de um mês internado. Aí recomeçou uma longa alternância entre a abstinência e a bebedeira. Até que em outubro do mesmo ano ele faleceu vítima de um AVC.

Anna Carolina, filha, lançou depois da morte do pai, O Diário de um Alcoolista, pela Editora Kelps. É um libelo emocionante da luta humana e solitária de Beto Leão. A tentação é uma força esmagadora da vontade fraca. Só os fortes sobrevivem ao fascínio do primeiro gole. Choro pelo amigo que não teve a força necessária.

Noutro dia, quando me dirigia à PUC TV, passei pelo mesmo bar da Avenida Universitária.  Os bêbados sorriam banguelas no carnaval.
Talvez pensem que aprenderam muito com a vida. Mas nada sobre o perigo a quem não consegue controlar o ímpeto de beber sempre mais.
 Beto Leão tinha talento e um belo texto. Apreendera tudo sobre cinema e qualquer assunto de seu interesse.
Não devia ter aprendido a beber.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.

Aruanã se veste de água e luz

No porto de Aruanã a canoa solitária lembra uma foto da ilha de Capri com um barco vazio deixado entre os rochedos da marina. Vejo o rio Araguaia como o fotógrafo viu o mar de Capri; do alto. Lá em baixo  o boto belisca os peixes que, desesperados,  fogem para a rasura; o tuiuiú, numa perna só, espera a sobra. Os dois tramam contra o cardume, o boto ataca e o tuiuiú não entra no rio. Deixam o céu para o martim-pescador que é mais rápido no ar. No bico do tuiuiú tem um peixe, dentro do boto outro com um menor na barriga. As águas prateadas brincam com a luz do sol. Meus pensamentos saem da água. Galopam no tempo com as rédeas soltas entre o silêncio das nuvens.

Há algo em comum entre as cores do Marrocos e a alma húngara que perambula pelas ruas de Budapeste? Será que a elegância e a bravura dos guerreiros Massais tem relação com a escola de Belas-Artes de Paris? Qual a ligação entre o místico Juazeiro do Norte e o Palácio de Queluz? Talvez o elo comum seja mistério no céu. Por fim, por que Hermes Trismegisto escondeu dos Carajás a arte de fazer ouro? Se o segredo fosse revelado a areia do Araguaia seria ouro em pó. Hermes tingiu de amarelo-ouro as escamas do peixe ‘Dourada’ que se veste de água e luz.
 
Volto ao porto de Aruanã; a canoa permanece abandonada. Nessa época do ano as praias ainda molhadas pela cheia mostram o lombo. Em junho já tem acampamento na margem e no meio do rio. Para o poeta Edival Lourenço, autor de O Elefante do Cego, o vale do Araguaia é o jardim do éden dos goianos. Mas, só nas férias de  julho, com a ressaca da festa de Trindade e da Copa do Mundo, começa a zoeira das canoas. Depois, tudo volta à paz no rio que corre inexorável para o mar. Aruanã é cenário que atrai artistas e escritores, político e celebridade; em comum a pesca.

Antonio da Kelps faz de Aruanã sua terra adorada, o mito, o ideal. Pescador incansável descobre lugares que nem os índios Carajás conhecem. Norman Douglas, romancista inglês, também fez da Ilha de Capri o seu lar e o palco da sua vida.

Um menino magricela rola na areia perto da canoa assombrada. Dá um rápido mergulho para tirar a areia do corpo. Matrinchãs assustadas passam por baixo da canoa vazia. O tuiuiú sobrevoa o boto-cor-de-rosa. Longe, no mar mediterrâneo, um golfinho pula no mar de Capri. A clara manhã de sol forte esquenta os bancos da canoa solitária.  Um barco vazio é tão triste e assustador qaunto um teatro abandonado.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

Imagens de papel

Rasgo a memória em busca das imagens guardadas entre os meus papéis. As anotações revelam histórias passadas; não só da minha vida, mas também de outras pessoas ou um acontecimento. Aqui vai uma crônica para celebrar a arte do diálogo e ver a lógica do argumento contrário com bom humor. E aceitá-lo sem evasiva. O armazém do Seu Juca estava instalado num prédio estilo americano, na Vila Nova.

Naquela venda não havia preço em coisa alguma. Ali se vendia de tudo: alimentos, ferragens, tecidos, material de construção, chapéus, instrumentos musicais, bijuterias e aviamentos. Era um pegue-pague; tudo ao alcance das mãos. Com uma diferença fundamental: não havia registro do preço de venda. Só havia um código com o  custo dos produtos. Mais tarde descobri que cada letra da palavra ‘pernambuco’ correspondia a um número de zero a dez.  Assim sete era ‘b’. Setenta, portanto, estava escrito com duas letras, b mais o, igual 'bo'. Sem trocadilho.

A maioria das vendas era feita fiado.

- Seu Juca, anota na caderneta. Um par de botinas!

Ele anotava o produto sem o preço de venda que era para poder negociar depois. O freguês aceitava as regras da casa; tudo era feito na base da confiança. Fazia parte de um jogo de barganha. No bom estilo de negociar  do povo abrâmico. Ele dizia:

- É fundamental conversar e convencer o outro da nossa razão. Não tenho preços fixos. Tudo pode mudar com uma boa conversa. Se o freguês me convencer da necessidade leva até de graça.

Ele dizia que havia falta de diálogo no mundo. E a negociação nos preços era um bom motivo de argumentos com mão e contramão.  Zequinha, um baiano de Ilhéus queria comprar um violão para o seu filho.

- Só pago 40 cruzeiros.

-Não, senhor, é 80 e não se fala mais nisso.

-Seu Juca, meu sonho é comprar um violão para o meu filho. Mas só tenho 40 cruzeiros. Se não quiser o preço que posso pagar não compro nem fiado.

Seu Juca pensou antes de perder a venda.

- Vai, leva o violão para o garoto!                      

Aceitou ganhar pouco naquele produto; menos perder o freguês. Perdia numa mercadoria e ganhava na outra. Cada objeto tinha um preço, dependendo da situação, do comprador e do momento da venda. Assim, seu comércio prosperou. Mas, de vez em quando alguém saía sem comprar nada. Ele perdia o humor quando isso acontecia. Num desses dias entrou na cozinha bravo.

A mulher de Juca passava boa parte do seu tempo cuidando de animais doentes que recolhia na rua. Na cozinha, encontrou a mulher cuidando de duas gatinhas recém-nascidas deixadas na porta do armazém. Perdeu a paciência:

-Quero que você se livre já dessas...

-Delicadamente a mulher disse:

Calma, querido. Não fale bobagens na frente das gatinhas, elas ainda são crianças.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (http://www.raizestv.net/)

Coração de boi

Bem cedo Quintino já estava debaixo do pé de manga coração-de-boi. Na sua mão um canivete de folha larga afiada na pedra de amolar tirada do córrego Botafogo. Pensava: “hoje, passarinho nenhum vai meter o bico na minha manga”. Estava vistosa. Solitária, no galho mais alto, se tingiu de dourado. Manga coração-de-boi que se preza tem cor amarela, vermelha ou laranja. E sem fibras para ser chupada até o caroço. Deu água na boca de Quirino. Só de pensar na doçura da manga ardeu-lhe a caxumba. Viu o alto da mangueira.

Uma copa enorme projetava sombras  no quintal vizinho separado por  muros de taipa. Embaixo, as folhas formavam um tapete folhado e úmido. Pendurado no pescoço um estilingue feito de borracha de pneus de bicicleta, couro de botina velha e forquilha de amora escolhida a dedo. Levava no bolso bolinhas de vidro para melhor precisão. Despescoçou o estilingue, pôs uma bolinha no couro da atiradeira.

Forquilha para cima, borracha esticada, arremesso calculado. Pontaria certeira. Bem no talo. A manga rodou no ar e caiu levando tudo que estava embaixo. O som de manga derrubando folhas era peculiar, simbólico da vida de moleque. A  bola perdida caiu, como a folha-seca do meia Didi, justo no telhado da penitenciária de Goiânia, no Bairro Popular. Sem danos. Os ruídos da manga despencando das grimpas, o quicar da bolinha nas telhas, soavam como música aos ouvidos de Quintino.

Veio com a família para Goiânia num caminhão pau-de-arara fretado na Bahia. Morava na Rua 79, aonde a maioria viera do nordeste. Seu pai, Raimundo, pedreiro em Correntina, trabalhava na construção do Centro Administrativo. Brigou no serviço por causa de marmita. No dia seguinte o outro foi encontrado morto com um furo no peito. Como era o principal acusado, foi preso incomunicável; a família desamparada.

Sua mãe, lavadeira. Tinha três irmãos mais novos. Mas, faltava o de comer. Ela saía à noite e, às vezes, chegava tarde. Bom que no outro dia havia dinheiro para o pão. Assim, esperavam o pai sair da cadeia. Não conheço nenhuma história de manga caída que demorasse tanto a chegar. 

A manga, em queda livre, bateu numa caixa de marimbondo-cavalo. Um deles, num vôo rasante, meteu o ferrão na sua orelha. Ardeu igual às tapas do Tião, moleque mais velho da Rua 68. Ouviu um baque fofo de manga caída sobre as folhas. E um grande furo de passarinho na fruta que amadureceu com o seu olhar. Só podia ser coisa de bem-te-vi. Num galho próximo um bem-te-vi parecia zombar do seu destino. O estilingue já estava pronto para atirar. 

Mirou firme que era bom de tiro. A bolinha bateu no peito amarelo que caiu ao lado da manga coração-de-boi. Suas perninhas, viradas para o céu, tremeram de morte.

O menino, a manga, o chão, o pássaro. Um soluço sacode os ombros magros, sem camisa, de Quintino.          

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

Carroceria de caminhão

Um caminhão de carroceria aberta parou na rodoviária de Palmelo. Pulei, rápido, na carroceria e me escondi no meio dos jogadores de futebol que se preparavam para viajar. Menino ainda queria ver o jogo do Palmelo contra o Pires do Rio Futebol Clube marcado para as 10 de horas de um domingo calorento. A viagem, de seis quilômetros, talvez durasse uma hora na estrada de pedra e poeira da época. Fiquei sentado nas tábuas ensebadas do caminhão do Sátiro, zagueiro troncudo do time da cidade. Cada vez mais eu me encolhia para que o meu pai não me visse ali. Fui eleito mascote do time na suada partida contra o time de Santa Cruz. Mas eu sabia que nada disso iria amolecer o coração do meu pai. Vi, passando pelas pernas dos jogadores e as frestas da carroceria a cabeça levantada do meu pai me procurando. Enfiei-me embaixo do saco de roupas do time. O Agostinho me dedurou. Desci com a orelha pendurada nos dedos do meu pai. Voltei triste e amedrontado para casa. Não me lembro do resultado daquele jogo.

Em compensação ouvi, na Rádio Globo, a final da Copa de 58 em que o Brasil foi campeão. Com direito a show de Pelé e Garrinha na voz de José Geraldo de Almeida. O menino da roça ouviu, pela primeira vez, que futebol é arte. Sublimando Pelé como o artífice que transmutou o couro da bola em ouro da fortuna dos jogadores descendentes do rei. Depois de Pelé, o único, talvez só Zico, Maradona, Tostão, Garrincha e Romário. Na Copa de 2010 vi alguns jogos. Só a Argentina, até agora, me agradou. Não gosto de futebol de resultados. Desculpem aqueles que querem ganhar mesmo com um futebol medíocre. Penso que não há valor que substitua a arte. Na atual seleção brasileira só o Robinho, como diz a Leda Selma, é capaz de fazer poesia com os pés.

E os pés tortos que erram o companheiro e o rumo gol são indignos até para amassar o barro da olaria. Mudo o canal da televisão com a mesma certeza quando escolho o livro que vou ler; percebendo a alma do artista na plenitude da criação. A mídia em torno de best-sellers e das músicas de momento é uma ignomínia. Mas no futebol as câmeras mostram quem é bom. E esse time da Argentina tem o Messi, herdeiro do talento dos grandes jogadores do passado. Com lampejos dos deuses do futebol. Dia desses, ao lado do campo de treinos da seleção brasileira, um bando de crianças descalças brincavam de bola num campo de terra batida.

Permaneci sentado nas tábuas da minha cadeira de balanço. Fechei os olhos e me entreguei às lembranças do futebol puro; feito com arte. O futebol de resultados é uma impertinência da arte. E viaja na carroceria levando na cara a poeira do tempo; o futebol-arte vai à boléia.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (
www.raizestv.net)

Cornetas em silêncio

Gosto de escrever quando desperto sonhos guardados na memória. Num canto do cérebro tenho páginas amareladas como a cor da paisagem de Goiás nos meses de seca. Descubro um prazer novo ao caminhar a esmo pelas ruas de Goiânia. Sexta-feira, duas da tarde. Passa gente calada com sorriso amarelo. Passam carros acelerados com bandeirinhas agitadas ao vento. Estranho, já foi o jogo do Brasil; não há alegria. Nem as vuvuzelas tocam nessa tarde lerda. Ainda bem porque o som maluco dessas cornetas atravessou o Atlântico para zunir sem parar nos meus ouvidos. Depois do ‘zero a zero’ elas estão silentes. Sossego para os meus ouvidos. Há um clima de velório que nem o grito dos locutores consegue abafar. Talvez o futebol arte tenha morrido de desespero pelo mau trato à mãe bola.

Na Praça Cívica os carros fazem fila no engarrafamento que enche todos os anéis. Um casal de jovens atravessa a Rua 26; veste verde e carrega bandeiras do Brasil. O rapaz, como quem procura esperança para os jogos futuros, pergunta o que ela acha da seleção.

-Não vai ganhar a Copa!

E disse com um olhar caído. O urro dos motores dos carros não deve incomodar um antigo morador da rua: Pedro Ludovico Teixeira. Talvez só o pesar da torcida chegasse ao além. Quanto a nós, cronistas, é melhor ficar atentos ao que acontece. Não é fácil escrever uma crônica em dias de jogo do Brasil; os sentimentos assumem o comando da mente. Espero por uma luz ou um fragmento qualquer para começar a crônica.

Chego ao portão da casa onde morou Pedro Ludovico. Um guarda vem até a grade. Tem jeito de quem discute futebol aos berros. Penso que é torcedor do Goiás. Falo comigo: “esse sujeito não gosta do Dunga”. Parei para olhar a casa; o pomar está mais crescido do que na época em que o fundador de Goiânia viveu ali. A fragrância das plantas da terra ainda sobe até a sua janela. Dá até para ouvir os sons da mata crescendo ao redor. Impressiona como a casa se parece com ele. Já reparou como as casas têm a cara do dono?

Sigo para o lado da Alameda dos Buritis sem perguntar nada; a placa anuncia que o museu está fechado para reformas. Do outro lado da Rua 26 há um prédio de muitos andares. Nas janelas mais bandeiras do Brasil como sinais de uma linha misteriosa traçada pelos torcedores obstinados.  Então, as coisas mais sérias ficam para depois da Copa. Aonde nos levará essa trilha secreta marcada com as cores da seleção brasileira?

Dobro á direita; avisto mais casas com a cara do dono. Se tivesse o dom  do retrato a lápis desenharia com precisão o rosto do morador. Não olho para trás. Pouco a frente outra fila de carros parados.

O mormaço traz no ar esperança antiga. Uma cigarra temporã canta rouca e desafinada numa pobre tarde de junho. Um caju maduro pula o muro da casa mais antiga da rua.

Doracino Naves é jornalista, diretor apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net/)

Alma laranja

Saio de casa depois do jogo em que o Brasil perdeu para a Holanda. A desorganização do time brasileiro dá um pouco de humildade em nossos exageros no futebol. Bem que o futebol poderia ser mais simples dentro e fora do campo. Melhor seria, simplesmente, um drible, uma ginga, um gol. Como nos tempos de pelada nos campos de terra da meninice onde o final é alegre. Mas, e o resultado, não importa? Mais importante é o prazer da vida. Ao contrário, em época de futebol de resultados, o sofrimento dos torcedores beira ao masoquismo.

Por que ligar para os amigos para ouvir amargura nessa tarde infeliz, dizer coisas vãs? Ainda mais, impacientes, ouvir a opinião dos comentaristas se vimos o jogo pela televisão?  Há um prazer mórbido nisso tudo. Melhor seria ver mérito no jogo da Holanda; não nos culpar pelo fracasso na Copa. Procuro ficar sereno na quietude dessa tarde quando a seleção brasileira volta pra casa depois de quase um mês na África do Sul. Os jogadores, meninos ricos e famosos, deveriam reviver o tempo das peladas aonde o placar do jogo é um mero detalhe de sonhos. Valia zoar o outro sem conflitos; hoje uma jogada de gol pode valer milhões de euros. Daí, talvez, a maior pressão sobre esses meninos da bola. Perder, às vezes, pode nos ajudar a vencer certas barreiras do coração.

Ando pelas ruas quase desertas de Goiânia. Sinto uma imponderável mão acalmando as minhas emoções. Entrego-me, resignado. Uma brisa suave mexe nos meus cabelos. Fecho os olhos aliviando os meus pensamentos. O jeito é usar o controle da mente para calar a pilha de palavras dos comentaristas que ganham para dizer coisas e mais coisas; como se soubessem tudo. Expulso o mau pensamento para purificar a mente.

Sonho com Deus; ou será que eu, enquanto ser humano, sou um sonho D’ele? Sonho com a música guardada nos meus discos, as histórias sonhadas nas páginas dos meus livros. Sonho com um mundo de alma grande, com o futebol alegre que sublime a arte da alegria de jogar. Idealizo a vida com simplicidade, igual comida de mãe. Simples como o trabalho físico que fadiga o corpo, mas alivia a alma.

Ergo os olhos. As árvores do Parque Areião estão com as folhas tristes como se fossem responsáveis por Goiânia, pelo mundo e pela derrota da seleção brasileira de futebol. Um vendedor de camisetas do Brasil, expostas num varal sem poesia, passa as mãos pesadas pela cabeça.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

Apito dos boiotas

Araguari, minha terra cravada no triângulo das Minas Gerais. Nasci numa casa de pau-a-pique no Porto dos Barreiros, uma vila de pescadores às margens do Rio Paranaíba. Augusta de Faro Fleury Curado, em seu livro Do Rio de Janeiro a Goiás assim descreve Porto dos Barreiros em 1889: "árvores de uma altura descomunal, à beira dos riachos, mil florinhas de cores vivas, o leito dos córregos cheios de pedrinhas alvas e tantas borboletas de lindas cores a esvoaçarem como ramalhetes alados". Pois é, do lado de Minas a gente via na outra margem do rio - lembrando Guimarães Rosa - o sertão, ou, mais fácil para nós, o cerrado goiano.

Minha família veio para Goiás em 1954. Eu tinha cinco anos de idade. A viagem de trem durou cerca de oito horas aos solavancos e ranger de trilhos. Descemos na estação de Pires do Rio e rumamos pra Palmelo na jardineira do seu Joviano Damásio. As duas cidades são vizinhas, pouco mais de uma légua de distância. Sou, desde então, goiano do pé rachado, mas, com espírito mineiro e esse jeitão da roça que me acompanha até hoje.

Seu Joviano era dono da única linha de ônibus Palmelo-Pires do Rio; também era o motorista e o cobrador. Quer dizer, a empresa de ônibus era só ele e a velha jardineira. Todos os dias ele fazia essa viagem. Saía cedo e voltava à noitinha, depois do último trem, inclusive aos domingos. Em Palmelo fiquei amigo do filho dele, Nelson, e, juntos, a gente pegava carona para passear em Pires do Rio. Enquanto a jardineira esperava íamos ao cinema. No Cine Eleusis foi onde vi meus primeiros filmes e conheci um pouco da cultura de outros países, para nós, da roça, só possível nos bons filmes.

Meu mundo de fantasia foi habitado por gente do cinema como John Wayne, Errol Flyn, Burt Lancaster, Charlston Heston, Yul Brynner, Alan Ladd e, principalmente, as festejadas estrelas do cinema:  Marilyn Monroe, Sofia Loren, Gina Lollobrígida, Ava Gardner e Elizabeth Taylor.

Os efeitos visuais, raros no início do cinema, já impressionavam pela realidade de algumas cenas. Num desses filmes americanos apareceu na tela um trem cuspindo fumaça pelas ventas. Começo pequeno e foi crescendo na tela. A câmera colocada debaixo do trem mostrava-o inteiro vindo na direção do público. Para mim parecia um rinoceronte furioso dos filmes de Tarzan. Aquilo me deixou assustado. Eu e o poeta Eurípedes Leôncio, hoje morando em Brasília, estávamos na primeira fila do cinema. Eu, apavorado com a aproximação do trem, falei baixo com ele:

-Esse trem vai passar em cima da gente. 

Olhei paro o Leôncio, na cadeira do lado. Seus olhos, vidrados na tela, pareciam bem maiores do que são. Quando o trem chegou perto mergulhamos imediatamente pra baixo das cadeiras.

O trem apressado passou com o som do apito nas alturas. E os dois boiotas escondidos debaixo das cadeiras. A câmera, parada, acompanhou a passagem do trem até ele sumir na tela. Ficamos ali, quietos, com cara de tacho. Eu, ingenuamente, perguntei:

- É só um filme, né?

- É...

Disse o Leôncio, refeito do susto.

Levantamos depressa e, desconfiados, nos sentamos novamente com receio da gozação. Saímos de fininho antes de terminar o filme. Alguém, esparramado na sua cadeira riu com sarcasmo  da nossa caipirice. Envergonhados, voltamos correndo para a jardineira e  ali ficamos até a volta pra Palmelo. Observei os passageiros do trem que vinha de Araguari entrando no ônibus. Voltou o filme do tempo. Aquela casinha de pau-a-pique de Porto dos Barreiros ficou perdida nos longos caminhos da lembrança.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

Tela branca

É desafiadora a tela branca do Word esperando um texto. Os dedos se preparam para escrever. O poeta Kleber Adorno, em um dos poemas do seu livro Sinfonia do Só, suaviza as funções das mãos: “São as extremidades ativas do corpo”.  Meus dedos inquietos  puxam a alma para o teclado inerte. Abro um caderno cheio de anotações. São fragmentos de fatos que acontecem na semana, as quais utilizo para escrever a crônica semanal. Sinto a mente cheia de ideias. Contudo, hoje, dormem nas linhas traçadas na página rota. 
                      
Olho as palavras escritas à mão. Elas continuam paradas pedindo para sair do escuro das notas feitas às pressas. No carro, no silêncio da madrugada insone, no ato da reflexão diária, numa palavra solta por alguém na rua, nas lembranças furtivas do passado, na leitura de um livro; uma música, um quadro. Minha lerdeza criativa espera sentir o sopro divino para escrever no vai-e-vem das emoções.
                     
O processo de criação é penoso quando as emoções não recebem o espírito criador. Sem essa chama somos incapazes de elaborar um pensamento elevado. E as palavras anotadas num momento de inspiração permanecem mortas. Às vezes uma ou outra salta do caderno. Até ele cria asas e fica a frente dos olhos cutucando a imaginação. Mas, elas precisam de uma liga espiritual para dar sentido ao texto.
                       
Escrever parece fácil, mas não é. Sabe por que parece fácil? Porque sempre a imaginação está nas nuvens, nunca ao alcance das mãos. E o nosso olhar se volta, quase sempre, para o outro, para o particular, o defeito humano e a incorrigível mania de patrulhar o comportamento alheio. Isso retarda a criação artística. Uma antropologia reversa. Quando olhamos na mesma direção, compreendendo os limites humanos, sublimamos os sentidos.
                        
Vixe! Estou indo por um caminho diferente do que costumo percorrer; falando de assuntos filosóficos. Prefiro a amenidade dos bons cronistas e poetas. Tanto falo, tanto escrevo que imagino que, mesmo sem querer, machuco alguém. Outro dia, um leitor me disse que minhas palavras escritas aqui no DM o ajudou a sonhar um pouco com uma fase da sua vida em que morava no Bairro Popular. Menos mal que seja assim.
                          
E o olhar insone da torre do relógio da estação continua olhando o passo de quem está no Bairro Popular. Agora, a tela branca do computador me olha perguntando qual a razão da imprecisão das palavras impressas pelos dedos. Voam para dentro do intrigante computador que as devolve escritas numa sequência que parece redonda.
                          
 Chego à janela, atraído por um chamado para ver se o mundo continua redondo. Prédios e árvores são obstáculos para eu ver além dos  limites dos olhos. Os dedos param de escrever. Encerro essa crônica com a sensação de que poderia fazer melhor. Fica a promessa para a próxima semana. Mas, meus cabelos balançam no vazio entre a cadeira e a desafiante tela branca.
                             
Doracino Naves, jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (http://www.raizestv.net/)
                             
                                                                                                                                                                                                                                                            
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Canário vesgo

     Na minha frente tem um quadro com mãos agigantadas; uma luz  fantástica e sutil iluminam as mãos suspensas com fios de prata presas no céu.

        Oh,benditas mãos! Mãos da da parteira que me tiraram do ventre da minha mãe. Mãos que hão de jogar a última porção de terra sobre o meu corpo. As de Cristo me abençoam  purificando as intenções da minha alma.

       Interessante como alguns  pintores retratam a  harmonia entre o rosto e as mãos de Jesus. Os gestos das mãos ficam sincronizados com a expressão do rosto.

       Gumercindo Tavares, personagem do monólogo de Pedro Bloch, fala das Mãos de Eurídice: Mãos brancas, mãos doces, mãos delicadas, mão pedindo preces, mão pedindo harpas. As mãos de Eurídice riam, às vezes ficavam furiosas. Choravam. Juntavam-se em súplica. Projetavam-se em desespero. Pediam asas, ternura e amor.

       Assim são as mãos no meu imaginário: pura expressão de sentimentos. Muitas vezes, porém, desconectadas do verbo, da expressão do rosto; uma desarmonia inominável.  Podemos perceber que as mãos postas no colo da Monalisa são tão serenas e enigmáticas como o rosto de La Gioconda. Lembro-me, ao dedilhar essa crônica, de um retrato da minha avó esquecido na parede da sala de visitas da casa dos meus pais. Suas mãos enrugadas; parecem trêmulas. Mas eram macias ao acariciar o meu rosto; emocionadas, mexiam meus cabelos com a ternura de um anjo. Aconselhava com carinho.

        Falava que eu deveria ser forte para suportar a vida. Ser forte como a mangueira do quintal. O córrego Botafogo, em Goiânia, criou debaixo de si, um leito de concreto para amaciar os coices do percurso. Não sei se cumpro o desejo da minha avó; às vezes fraquejo no viver. Entretanto, os gestos das suas mãos ainda me mostram os caminhos aonde devo ir. Sigo lembrando-me dos seus olhos pequenos, das suas ternas mãos. Um dia  ela me mostrou um canário vesgo acostumado ao quintal da casa. Disse qualquer coisa sobre o estrabismo do canário, mas ponderou que ele tinha o canto mais afinado da terra.

           A impressão que ainda guardo na lembrança é a imagem dos gestos das mãos da minha avó abrindo uma clareira nos meus sentidos. Os olhinhos do canário seguiam atentos às suas mãos que irradiavam uma cândida luz.
          Piedade!

         É lua cheia. O bosque do Parque Areião cresce debaixo do céu cinzento das chuvas. As mãos do quadro à minha frente dizem coisas insólitas.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na PUC TV

Pulgas bêbadas

No começo do dia eu descia pela Avenida T-1, depois de andar pelas ruas atochadas de carros levando gente apressada. Uns avançam o sinal vermelho, outras passam uma roda sobre o meio-fio para furar a fila de carros que escorre lerda pelo asfalto cansado do acelera-e-para. À frente, numa esquina de pista dupla, o trânsito para. As luzes do carro da polícia piscam alucinadas no cruzamento; uma ambulância de sirene ligada procura uma brecha apara passar.

Um camburão do IML indica que algo de mais grave aconteceu. A fila dupla, até tripla, me faz andar sem querer. Nem soube o que aconteceu ali. Alheia, a mulher fuma um cigarro acenando nervosa com o homem  no banco de passageiro. O som bate-estaca da caminhonete ao lado fez vibrar tudo a sua volta. Uma mocinha, distraída, passa batom vermelho nos lábios. Os carros de luxo mantêm os vidros escuros fechados.

O careca com ar de quem discute por qualquer erro no trânsito tira cera do nariz. O mundo, irônico, parece inocente nessa manhã de engarrafamento na Avenida T-1. Nem as setas, abolidas do uso pelos motoristas de Goiânia, dão sinal de vida. Triste sina dos cronistas das grandes cidades. Não há nenhum exemplo ou uma lição que mereça uma boa crônica. Mais sorte tem os poetas ao dar voz à indignação da alma.

Vagueio com suave emoção na pressa metálica que campeia nas ruas de Goiânia. A gente, enfim, acaba se conformando com a rotina  nervosa do trânsito. Inevitável comparação com o trânsito de Goiânia de outros tempos.

Lembro-me de Goiânia com poucos carros. Bem diferente do alvoroço nas ruas e avenidas de hoje. Puxo mais longe nas lembranças. Não me recordo de ficar estressado naqueles tempos. Havia, creio, mais camaradagem com menos disputa pelos pelo espaço nosso de cada dia. Até os ônibus circulavam com poucos passageiros. Em troca do sossego eram cheios de pulgas. Elas saltavam bêbadas pelas residências, cinemas, teatro; nas salas de aula, hospitais; em todos os lugares onde tinha gente.

Por falar em espaços públicos onde andam as pulgas da Avenida Bahia e da P-16?  Sumiram para sempre.  É, os tempos de hoje são outros. Para alguns, melhores. Para outros, piores. Na verdade, são tempos diferentes. Mas, as pessoas, no geral, têm os mesmos sonhos. Por que sonhamos com essa Goiânia do  passado?

Talvez seja porque foi o tempo de descoberta da beleza das coisas, o ar puro dos Bosque dos Buritis, as ruas sem asfalto da Vila Nova, o Cine Campinas, o Setor Oeste sem casas, a fazenda onde hoje é o Jardim América. Ou o gosto do melado vendido no Mercado Central. A moça branca. Que delícia de doce!


No final da vida as lembranças voltam das catacumbas dos sonhos. Paro na esquina da T-9. O começo do meu dia foi invadido por uma multidão de carros que entope os meus olhos míopes.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

Pedras na urna

Com o barulho da ficha descendo na garganta da urna o motorista abre a porta do ônibus. Os mais espertos jogam pedrinhas como se fosse o bilhete de passagem. Poucas linhas de ônibus na Goiânia dos anos 60. Todas iam do centro até o ponto final dos bairros; Campinas, Vila Nova, Setor Pedro Ludovico, Vila Coimbra, Setor Universitário, Fama. As catracas eletrônicas de hoje são mais eficientes. Mas, a superlotação tirou o prazer da viagem de ônibus daqueles anos.

Não havia furto e sobre assédio sexual nem se ouvia falar. Nos finais de semana, na pacata Goiânia de 32 anos, os ônibus levavam ao cinema. Domingo era dia de seriado no Cine Santa Maria, com filmes no formato das atuais novelas de televisão. Naquele tempo existia em Goiânia um cinema para cada grupo de dez mil pessoas.

Só no centro tinha cinco: o Cine Goiás, Santa Maria, Casablanca e Cine Teatro Goiânia. Em Campinas, Cine Helena, Eldorado, Campinas e Cine Avenida; na Vila Nova, o Cine Regina; na Fama, Cine Rex. Dia de cinema a gente vestia a melhor roupa. Para entrar no Cine Teatro Goiânia e Casablanca, à noite, só de terno; sem ele, nada feito. Quem não tinha paletó arrumava outro jeito para entrar.

Como era isso? Alguém de terno entrava e, escondido do porteiro, passava o paletó pra quem estava de fora. Assim, muitos entravam com um único paletó. Teve um dia em que o time do Las Vegas, uma equipe amadora de futebol da Vila Nova, entrou no Cine Casablanca só com o paletó do Nondas, meia-direita do time. O filme era o clássico Sansão e Dalila, com Victor Mature e Heddy Lamarr, dirigido por Cecil B. DeMille.

Até torcida tinha nas salas de cinema. Só que diferente dos estádios de futebol onde a torcida é de dois; nos filmes ninguém torcia pelo jacaré. Todos torciam pelo mocinho na ilusão de que fosse possível outro final. A plateia, alucinada, aplaudia e gritava o nome do herói.

Nos filmes de índios, então, a chegada da tropa americana a cavalo soprando cornetas era saudada por uma gritaria geral, unísona. Nos filmes de Tarzan, quando o herói da selva batia no jacaré, o chão tremia com o bate-pé da torcida.
- Êêê!   Esse Tarzan é demais!

O cinema americano encantou milhões de pessoas. O cinema nacional também tem o seu encanto.

Nas chanchadas brasileiras o foco é o carnaval com burlesca crítica social e política. Em outros filmes da época a sátira foi o cinema americano. Nem Sansão nem Dalila, com Oscarito e Eliana Macedo é uma paródia. O cinema brasileiro tem filmes mais engajados como Macunaíma, estrelado por Grande Otelo e Paulo José, um clássico do cinema brasileiro. As revistas em quadrinhos completam a magia do cinema.

Aos domingos as calçadas vizinhas aos cinemas se transformavam em feira de gibi usado. Os mais cobiçados: Roy Rogers, Batman, Fantasma, Zorro, Billy the Kid, Superman, Tio Patinhas, Peninha, Pato Donald e Mickey Mouse.

Os gibis foram leitura obrigatória para os cinéfilos dos anos 60. Boa parte dos estudantes dessa época aperfeiçoou o gosto pela leitura lendo gibis que, mesmo depois de ensebados ainda tinham valor para trocar por outro usado. Até com um dinheirinho de volta se fosse raro.

O bom ônibus, o bom cinema; dormir no cinema. Uma ficha desce macia pela garganta. Deus abre a porta. Desço a escada olhando para o céu. Estendo os braços para o alto. Não jogo pedras na boca da urna.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

Na hora solene do meio dia

O orador sobe a tribuna. Espera o sinal para começar. Ao fundo do salão da escola tem um mural de recados colado na parede. O alto falante anuncia o nome do último concorrente de um concurso de oratória, tradição do Grêmio Literário professor João Alberto de Almeida. Seis finalistas chegam à final: Claudino, Joely, Anadir, Aldo, Epaminondas e Juvenal. 

As regras do concurso marcam uma edição por ano. Ao vencedor duas vagas para a excursão dos alunos à Caldas Novas. No centro do salão uma tribuna, totem de vaidades, abraça os oradores com gestos ensaiados, clássicos. Alguns foram praticados em cima de um cupim nos ermos de Setor Jaó daquela época. A linguagem caprichosa vem repleta de citações românticas.

No canto do salão, o professor Vanderlan  acompanha a verve dos oradores. Baixo, franzino, agitado, parece com os poetas do romantismo. Lembro-me de que ele entrava na sala declamando Castro Alves. Ainda havia os mestres João Natal, Belarmino, Arnóbio, João Ubaldo, a professora Iara que, atentos, escolhiam o melhor discurso.

Vestiu-se de verde e amarelo o cenário dos candidatos a Rui Barbosa.  Alunos militantes se organizam em claques. Lá no fundo, uma menina encostada na parede veste olhos de segredo; pórticos de luz. Jorra deslumbre. Ela enxerga com olhos azuis, perfeitos e úmidos; emoldurados por cabelos castanhos. Está ansiosa pelo final. As peças de arquitetura construidas por palavras tinham que driblar, como Mané Garrincha, os censores da ditadura militar galopante no lombo do ano 65.

Um mulato forte, grandalhão, alma fardada, entra sorrateiro e se esconde no meio da multidão acesa pelos tempos luminosos dessa era. O concurso de oratória haveria de prosseguir. Afinal, o córrego Botafogo, que corre às costas da Escola Técnica de Comércio da Vila Nova, despreza o remanso, sofisma as pedrinhas do percurso.

Procura uma posição mais cômoda para morrer nos braços do rio Meia Ponte. Os córregos e os rios procuram o mar fadigado como antenas titubeantes. Trôpegos, meus sentidos tateiam nas lembranças. Atrás do orador tem uma parede com bandeiras num mastro de madeira colocado no piso. O orador espera tenso, frio como uma parede na sombra. Do alto da tribuna olha a platéia  com medo.

Misericórdia. O espaço desta crônica acabou. Volto na próxima semana para terminar essa história.
                     
Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.fontetv.net)
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Jornalista tardio

 
      Se eu não fosse jornalista seria músico. Mas sou um tocador de cavaquinho frustrado que não aprendeu extrair dele uma nota sequer. Aliás, essa é a frustração da minha infância que foi como disse Millôr Fernandes: "Dura! Dura! Linda! Linda!". O caso do cavaquinho aconteceu assim: Meu pai, Zequinha Naves, antes de ser Coletor Estadual fora, junto com meu tio Dedé - Ezequiel Naves de Almeida - donos de cartório em Palmelo. Era um cartório de cidade pobre do interior, ali pelos idos de 1955. Portanto, cartório dava pouco dinheiro e havia pouca grana para manter os filhos.
            Querendo melhorar a renda meu pai se preparou para ser Coletor Estadual. Quando foi empossado tirou parte do seu primeiro salário para comprar um cavaquinho lindo. Este foi o primeiro presente que ganhei do meu pai. Ficou marcado pela minha falta de jeito com o instrumento.  Sou analfabeto musical; não tenho nenhum talento para a música.

           Palmelo, naqueles tempos de Jerônimo Candinho, era praticamente rural. Acho que até hoje é assim. Aprendi a nadar no Córrego Caiapó, cheio de cintilantes peixinhos miúdos com pequenas pedras coloridas no leito das águas claras da primavera. Vida de criança do interior e cheia de folguedos. Atirei pedras com estilingue nas mangueiras do vizinho. Jogava futebol num campo de terra batida onde ralava meus joelhos no chão duro. Amei, no fundo do quintal, escondido entre as bananeiras,  as meninas vestidas com macios panos de  chita. Essa fase de moleza durou até aos dez anos. Aí, num dia qualquer de 1959, a família se mudou, de mala e cuia, para Goiânia.

          Tempos depois, após 25 anos num escritório de contabilidade, entrei na Universidade Católica para cursar jornalismo. Isto foi em 2004. Por essa causa sou um jornalista tardio. Continuo um animado aprendiz de jornalismo. Tento me renovar sempre no gosto pelas formas com nova visão dos fatos.

         O jornalismo opinativo tem o seu valor pela experiência de quem escreve. Mas nada melhor do que uma boa reportagem. Daquelas em que o repórter sofre para apurar os fatos e, depois, satisfeito com o final do trabalho, dá a notícia como se houvera fisgado um peixe grande. A realização do jornalista pode vir num texto romanceado, na voz alegre de quem anuncia o fim de uma Guerra Mundial ou na expressão serena de um repórter diante das câmeras anunciando o fim de um sequestro. Acho que essa minha paixão pelo jornalismo vem da época do Repórter Esso.
         Pôxa, ao me lembrar dessas coisas antigas me vem a sensação de que já descambo pelo outro lado do morro.                          
        E a alma da gente vai ficando por aí, perdida nas metades do outro. A gente deve ser assim, rasa e intensa como é o leito de um riacho descendo a ladeira.
        Pois é. Turvar a água do córrego não significa que elas fiquem profundas.
         
       
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizestv.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.

                           
domingo, 20 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Espelho do Sol

Gosto do sábado. Deus o criou como modelo para os dias de folga. Assim, ando livre por Goiânia. Na agenda de hoje tem um passeio sem compromisso pela cidade. Saio de casa com a alma leve. No bolso, nem lenço, nem documento, nem o celular indiscreto. Só levo as aventuras da semana guardadas no peito. O sábado tem cheiro de partida. Minha alma voa a um dia certo, no futuro, quando hei de prestar conta dos meus atos ao Criador. Talvez seja num sábado.
             
Na hora do Juizo Final quero um espírito sossegado pelos sábados alegres, de passeios e pescarias. E de repetidas iniciações, batismos e catarses. Oh, tempo inexorável, pode tirar o meu sossego nos outros dias; menos no sábado. Rogo a Deus - que a amada não me ouça - para que cure a minha chatice crescente com a idade que chega branqueando os cabelos. Meus amigos sabem que aos sábados sou melhor do que nos outros dias.
            
Minhas emoções, presas com sentimentos, se libertam. Elas voam acima do ipê amarelo da T-1. Anjos adejam no céu. Embaixo, o tempo úmido das águas de março se guarda para os meses secos do cerrado. As últimas nuvens soltam gotículas que  prometem voltar no meio da primavera. Estamos no outono. No Parque Areião a lua cheia alveja as folhas do ipê esperando ordens do céu para florir. Promessa de flores brancas de ipê. 
               
O sábado, animado,  veste branco; inocente, puro, com a cor da pele do cordeiro. Um vento suave e fresco balança minha camisa de algodão. Olho para o lado procurando a palavra perdida nos tempos de Hiram. Busco, incansável, a chave da existência. Pode ser que esteja guardada sob a abóbada do Arco Real. Ou, talvez, a Luz ainda esteja distante da minha compreensão.
                
Fico perto de mim para saber quem sou. Sina inglória essa de a gente se esmiuçar nas lembranças para se conhecer. Numa padaria do Setor Oeste encontro um amigo da época do Automóvel Clube, onde hoje é o Parque Flamboyant. Sábado jogávamos futebol de salão. Ele, poeta da bola. Eu, espectador da vida, projeto de cronista.
                
O poeta, na tessitura do verso, se faz sublime aos sábados. Gosto desse dia de casamentos; noivos em juras de amor. Mas, ele também simboliza  despedidas, perdas. Sorte que neste sábado a lua brilha por trás das últimas gotas de chuva de 2011.
                
É lua cheia. O sábado ilumina minhas sombras. A lua, espelho do sol, faz a sombra se esconder dentro da mata.
                
Doracino Naves é jornalista. Diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (http://www.raizestv.net/). Escreve aos sábados neste espaço.
 

Chove poesia na minha crônica.

Yêda Schmaltz: “Está caindo uma chuva de poesia na minha horta/ A poesia está batendo na porta, Carlos, e pulando pela janela/ a poesia está me afogando em poesia”.

Luiz de Aquino: “A noite anda, e aviva a chuva/Há um ar de espera e ansiedade... A mão diz adeus, a boca assente”.

Edival Lourenço: “Tudo é temeridade: a vida é um tremendo bolo/-uma brevidade".

Pio Vargas: “O volume da chuva é que decifra o dilúvio/ como no corpo eflúvio/é âmbar a dúvida/ a porta que mais vence/ é a porta que aberta permanece/ e o corpo que sente/ é nem sempre o que adoece”.

Novamente Pio Vargas: “Hoje é este voltar-se para dentro/enquanto alguém foge/com meus olhos molhados/ Alguém que eu saberia explicar/não fosse a tarde apodrecendo/dentro do peito/ e a inútil agonia de morrer”.

Chico Perna: “O pássaro sonhado carrega/nas asas muitas pedras/ perseguições e desencantos/ por estar preso ao sonho/a um visgo tão ilusório quanto a sua existência”.

Gabriel Nascente: Havia uma chuva/escondendo nuvens/dentro do sapato/havia um rio que nunca nadou entre as escamas/E um adejo de pombos na taça de Dionísio”.

Sinésio de Oliveira: “O relógio parou/ O tempo continuou dentro dele/ A imobilidade dos ponteiros é o tempo atropelando tudo e todos”.

Miguel Jorge: “Já não se vê o azul do azul, o mar que se imagina/Um tempo que fora assim de uvas, de frase e vinhos passados na memória/ - E quem cuida das vinhas do mar? O sono se desfaz no fim da linha, sensual linguagem que mal se pronuncia/ Cospem chuvas as uvas, verdes migalhas sobre a paisagem/Alguém fecha os olhos da noite, as feridas travadas dentro da casca, inutilmente expostas".

Gilberto Mendonça Teles: “Num cantinho de Goiás/quem achar um verso é meu/Tirei da pena de uma ave/que cantou e se perdeu/saiu voando, voando/nunca mais apareceu”.

Afonso Félix de Souza: “Ruas de chuvas leves, nunca o inverno/Como menino a brincar vinham as tardes/ e vinha o céu/Adeus, nuvens cinzentas/ onde vagam os monstros meus da infância”.

Brasigóis Felício: “Dizemos que não se fazem/ mais dias como antigamente/como a querer que o ontem/permaneça o mesmo/hoje e para todo o sempre”.
             
Carlos Willian: “Não há caminho/ e nada valho/ meu rir lascivo/é uma coreografia de enganos/ eu cresci como crescem/os espantalhos/ eu cresci sem planos”.

Cora Coralina: “ Não te procurei/não me procurastes/ íamos sozinhos por estradas diferentes/ Indiferentes cruzamos/ Passavas com o fardo da vida.../ Corri ao teu encontro/ Sorri.Falamos/ Esse dia foi marcado/ com a pedra branca/ da cabeça de um peixe/ E, desde então, caminhamos/ juntos pela vida...”

      
Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do Programa Raízes Jornalismo Cultural na Fonte TV (
www.fontetv.net)

Setembro Amarelo

Nas madrugadas calorentas de setembro o mundo é o culpado pelas tristezas do Bairro Popular. Com o tempo amarelo-seco tudo parece perdido. O vento quente entra sorrateiro através do lençol. Meus sonhos e medos se escondem debaixo da cama. Com as surras do mundo nas costas me aprumo na cama. Espreguiço para expulsar a moleza que ronda meu corpo cansado de esperar pela chuva.  Quero soltar pipas na clareira do Estádio Olímpico, sob o céu azul dessa primavera que chega marcada com o atraso das chuvas deste ano.

Sentado na cama ouço as tarefas diárias dançando em cima do meu telhado. Sou rei na minha cama. Em prece, estendo as mãos para o alto. Elas puxam meus braços em direção ao sol que se esconde dos meus dedos. Nestes instantes de sonho imagino que posso alcançar o céu com as mãos. Por que os vaga-lumes fugiram deixando somente nuvens escuras sobre a terra?  Cansados da pequenez do homem os vaga-lumes fugidios se fizeram estrelas. Ou talvez, em bandos retirantes, foram se juntar ao sol para iluminar o mal da terra. A noite chega calorenta e abafada com a falta de vento.

A lua clareia as rachaduras do muro cinza com nascentes cachos de uvas verdes sendo preparadas para o Natal. Minha casa balança com os meus sonhos. Oh, Quintana!  Neste muro tem “Uma única porta. No único muro de uma casa em ruínas. Cuidado... Quem atravessar essa porta, à noite, pode ficar para sempre no Outro Mundo!”.

Expulso a dual mistura de preto e branco que pinta de cinza o meu dia neófito. Ponho o verde no amarelo para criar o azul, lembrando acidentalmente o Césio 137 que afligiu o Bairro Popular em 1987. Agora, quando estamos prestes a completar 23 anos da tragédia do Césio me lembro de todos os relatos dramáticos. Alguns dolorosos, de gente que fugiu daqui com medo. Lembro-me bem da história de uma mulher casada com um vendedor-viajante que, no estourar da bomba de césio, se encontrava em Miracema, Tocantins.

O marido, por telefone, pediu à mulher que não saísse de casa até passar o perigo de contaminação. Que esperasse pela sua volta dali a uma semana. A mulher, com dois filhos pequenos, se aninhou no pequeno quarto de um barracão nos fundos da Rua 57. Presos numa parede branca os cachos de melzinho de são-caetano se abriam em flores amarelas; com sementes vermelho-brilhante para atrair beija-flor.

Chegou o fim de uma semana e o marido não voltou. Preocupada, já não dormia de ansiedade. Lá fora, o roncar das máquinas e dos caminhões mostrava a pressa em levar o lixo radiativo para longe. O vozerio de repórteres e chefes de operários dava a impressão de um campo de guerra; um território minado por bombas radiativas. Passou outros dias e outras noites e ele não voltou. No cochilo das noites mal dormidas ela sonhava com os passos e a voz do amado chegando para salvá-la da prisão.

Cansada de esperar, juntou os filhos e fugiu para a casa dos pais, em Cromínia. Deixou para trás o sonho de Goiânia e “aquele” que nunca mais voltou.                                              Decerto, encantado por um rabo-de-saia qualquer. Mas, ela estava livre dos males da radiação e da espera inútil.

Atrás do muro cinza o tempo se esforça para brotar as uvas nos galhos sobre o muro que insiste em continuar cinza. O mundo é inocente pelos lados no Bairro Popular.
 
Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Flagrante

Manhã de chuva intensa no centro de Goiânia. Motoqueiros se escondem da chuva, pedestres esperam embaixo das marquises até o temporal passar. Dezenas de carros aguardam o sinal verde. O ônibus-sardinha também para. Todos param na esquina da Avenida Goiás com a Rua 2. Um vendedor de frutas borrifa água nas maçãs vermelhas, goiabas verdes, uvas roxas, pêssegos amarelos e mangas cor-de-rosa. As frutas sentem cócegas no corpo. Sobram gotículas que escorrem lembrando o orvalho de inverno no capim meloso do campo limpo. 
      

                 Chego inteiro à esquina, com o espírito cheio de arestas. Mas mesmo na chuva, minha alma é clara. Parece, na minha míope visão, o espírito eterno de Renoir quando pintou Le Ponte des Arts, em Paris. Ele, genial artista, retratou o porto do Rio Sena tomado de luz e pedestres na praia. Eu, escritor neófito, talvez aprendiz abaixo de zero, digito meus limites nesta crônica com as cores da minha percepção.
     

               Ainda sinto o cheiro do café servido, minutos antes, na varanda da casa da irmã Marlene. Misturado com prosa sobre assuntos amenos, com direito às caçoadas do sobrinho Daílton, que acordou de bom humor. Na boca ainda tem o gosto do pão de queijo quentinho servido com um copo de suco de laranja. Nisso entra uma vizinha com um prato de pamonhas. Marlene retribui com um prato de pão-de-queijo. O café, a prosa animada e o calor da fraternidade da vizinha é um conjunto melhor do que o café-da-manhã em hotel chique.
       

              Um copo de suco de caixinha não é igual a um copo de fruta fresca, colhida no quintal. Um frango alimentado com hormônio de crescimento, servido com nome francês, nem se compara ao frango com quiabo e macarrão feitos na roça. Aliás, o  macarrão industrializado não tem o mesmo sabor do macarrão caseiro da mamãe; nascida mineira, bisneta de italianos. Luz da minha alma errante. Para ela sou o homem mais bonito do mundo e sem defeitos. Isso, claro, quando meus irmãos Sinésio e Everton não estão por perto. Aí ela diz que todos são perfeitos.
        

               Olho em frente, ao alto, o sinal vermelho chameja ao vento que sopra nas lembranças paradas na esquina. O vermelho dança sob a chuva forte, no  vai e vem das ondas do tempo. Sou exato nessa esquina; passo por aqui todos os dias às sete da manhã. Busca uma rotina amena para encarar o mundo duro.  “Pontual como um grito de carnaval” recordando a poesia de Gilberto Mendonça Teles. Rubem Braga diz que acordar mais cedo faz o dia maior.
         

             Pisco os olhos, à esquerda vejo um homem com o guarda-chuva prata leva nos braços um ramalhete de margaridas coloridas. Serpenteia decidido entre os carros, talvez vá ao encontro da amada. As águas correntes no asfalto cedem aos passos do homem; calçado com galochas de plástico. Na esquina parada, onde só a chuva se movimenta, todos olham o homem passar com o semblante luminoso. Penso que vai com um pedido de casamento na garganta. Ou o motivo das flores seria outro? Melhor pensar que navega ao encontro da namorada.  
          

           Segue pela calçada. Olho-o através dos vidros embaçados até perdê-lo de vista. A esquina ficou vazia sem a presença dele. A chuva foi embora, no lombo do vento que voa para o lado do Bosque dos Buritis. A câmera lenta do tempo é desligada. Os motoqueiros aceleraram suas motos desvairadas. Alguns pedestres, mais afoitos, enfrentam os últimos pingos  da chuva fria. 
         
          

          O sinal abre passagem. O ônibus se antecipa aos carros. Sacoleja ao ritmo da dança de lobo guará. Os carros se movem.
          Não sei se vão ou vêm. Saio da esquina pela metade.
          Assovio uma música antiga nessa manhã chuvosa.

        Doracino Naves, jornalista: diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Culturalwww.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.