segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014 | By: Clara Dawn

Truão sonhador

     Quando vejo pessoas tristes dá vontade de contar uma história tão interessante que as façam sorrir até chorar de alegria.

         Noutro dia, no elevador do prédio onde trabalho, encontrei uma moça aos prantos com soluços doídos. Disse-lhe: nenhum homem ou situação alguma merece suas lágrimas. Ela riu com os lábios fechados, mas continuou a chorar. Preferi não perguntar o motivo do choro. O elevador desceu macio: 3,2,1,T. Parou aí. Ela desceu antes de mim que iria à garagem. Percebi que chorava menos do que quando entrou. Agora tem uma aparência resignada. Despediu-se com uma leve aceno de cabeça. Mas ainda vi que algumas lágrimas insistiam em correr pela face redonda de santa católica daquela jovem.

          Sublimei a moça chorosa: vá com Deus! Ela sorriu com um canto da boca e saiu do elevador. Em outros momentos da vida já vivi situações assim. Nesses momentos minha vontade é escrever uma história capaz de tirar a tristeza das pessoas. Escrita com palavras de veludo, a graça do palhaço de circo no picadeiro e a carinha meiga de um bebê rechonchudo.  Que tal história seja mágica a ponto de fazer marido e mulher rirem um para o outro com a mágica do primeiro encontro.

         Pois que a história - se eu pudesse criá-la com o espírito que imagino - vagueie aos sons da corneta de Josué derrubando os muros da intolerante Jericó a abrir caminho para ver a alegria do céu quando recebeu Cora Coralina com um pote de doce de leite.  Ou a alegria do brotar dos pendões no milharal com as gotículas do sereno da madrugada escorrendo pelas verdes folhas. Nesse cenário alegre os anjos desceriam para anunciar a volta da flor eterna e o fim da tristeza na terra.

        Despertai, truão sonhador! A euforia abobalhada disfarça nossa missão de operários peregrinos da evolução. Mas, que reste esperança aos corações tristes. Entre o espanto e o medo dos dias de hoje faz-se necessário um intervalo para a prece consoladora e a poesia do mundo natural que se expressa no pulsar da vida. Os poetas decodificam o mundo aos que não têm olhos ver além da forma gráfica dos símbolos. Alberto Caeeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, a quem Pessoa conceitua como o mestre que aparecera dentro dele, escreveu O guardador de Rebanhos. No último poema, publicado em 1925, ele diz: “Passo e fico, como o Universo”.

          Continua a metáfora de Alberto Caeeiro: “Meto-me para dentro, e fecho a janela. Trazem o candeeiro e dão boas-noites. E a minha voz contente dá as boas-noites. Oxalá a minha vida seja sempre isto: O dia cheio de sol, ou suave de chuva, ou tempestuoso como se acabasse o mundo, a tarde suave e os ranchos que passam fitados com interesse da janela, o último olhar amigo dado ao sossego das árvores, e depois, fechada a janela , o candeeiro aceso, sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir, sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito, e lá fora um grande silêncio como um deus que dorme”.

           Tenho vontade de escrever uma história que apague a minha própria tristeza.

(Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural (raízestv.net), PUC TV, sábado 13h30. Escreve aos Sábados no DMRevista). 
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014 | By: Doracino Naves

A sós com o meu riso

Sorrio ao sentir o milagre de andar livre pelas ruas de Goiânia, erguer os olhos sobre os prédios, olhar para o alto, pisar a calçada do Bosque dos Buritis, sentir o cheiro da vereda do Parque Flamboyant, ou falar com as pessoas no Biscoito Pereira da Rua 55.  É um milagre especial a chance de rever lugares comuns. A saudade é o milagre da memória. Tudo o que acontece no mundo é  milagre, desde o instante de desabroche de uma flor ao nascimento de um bebê ou o surgir de uma estrela no eterno firmamento. Também é um milagre a poesia dita à amada ou quando vai com ela para a cama. A vida, por si, é um milagre transcendental; surge em todas as manhãs e vai até o dia seguinte, mesmo que a morte apareça antes da aurora. A finitude é o milagre do renascer. 

Nada escapa à lei do possível. Tudo pode acontecer nesse mundo comandado pelo milagre; o alvoroço das abelhas na tarefa de esculpir o favo de mel; o pôr-de-sol  que prenuncia estrelas distantes, quietas e luminosas. Ou o iluminado risco crescente pendurado no céu com aviso de lua cheia. Essas e tantas outras coisas, mesmo na abjeta individualidade, estão ligadas entre si. Esse é o milagre da conectividade do cosmo. Cada árvore ou o corcunda mover do inseto que busca abrigo com medo do passarinho é um milagre imbricado em outros mais ou menos importantes.

A inspiração da arte na alma do homem é, para mim, o mais invejando milagre; o escritor ao sublimar a palavra faz milagres. Graça tem o olhar do pintor que cria imagens coloridas. Mozart, sob os influxos do som harmonioso das galáxias, decodificou o milagre em suas melodias.  Isso é igual ao ator que apreende o sentimento de quem escreve e o retransmite na interpretação do drama ou da comédia. Dessa mesma forma vejo a cultura popular de cada povo se expressar no milagre da tradição ou a verve do poeta que acredita que a sua dor é a maior de todas. Percebo, quando vejo o mar,  que o movimento das ondas se transformam em milagres de idas e vindas; fluxo e refluxo das marés. Ou a curiosa intuição dos peixes que se escondem dos ventos ou do frio nas águas mais profundas. Mesmo a ciência e a tecnologia moderna, tão senhoras do seu nariz, são manifestos de milagres.

Ainda mais, a descoberta de partículas menores do que o átomo ou de planetas gigantes revelam o milagre do conhecimento ou o descobrir do fantástico. A matemática é o milagre da precisão e a fé dá a certeza da resposta milagrosa. O amor ou o ódio, paradoxais, são prodígios da idiossincrasia dos hormônios. Lá no alto, no espaço sideral, a física liberta a nave flutuante. Naquela igreja apinhada, a prece voa com asas de origami; no estádio Serra Dourada, o torcedor, cheio de esperança, espera o milagre do gol; no ônibus ou na aeronave lotado milhares de pessoas têm encontros arranjados pelo destino. Cada choque da matéria ou o encontro do espírito revela o milagre da lei da probabilidade. 

A beleza de um urso panda ou a feiura repulsiva de uma barata cascuda é um milagre da natureza; tudo que se vê ou alcança é um milagre sem fim. Existe coisa mais sobrenatural do que o milagre?  

(Doracino Naves, jornalista: diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultura, PUC TV, sábado,13h30. Crônica publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 08 de fevereiro de 2014). 






segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014 | By: Doracino Naves

Escritor Fantasma

Os fantasmas não habitam casas, quartos escuros, nem os cemitérios.Também é maluquice pensar que eles moram em outra dimensão. Na verdade somos nós quem dá vida aos nossos fantasmas íntimos.  Só a imaginação é capaz de chamar anjos ou acordar os diabinhos que se escondem num lugar da alma. Acredito em anjos e em capetas. Os primeiros são guardiões a nos guiar pela vida. Os coisas-ruins são sanguessugas nas nossas emoções; mostram sua cara feia quando saímos da linha. Então, cada um deve controlar os seus próprios demônios; os dos outros é responsabilidade dos outros. Para expulsar demônio só reza braba, mas, por causa da nossa ignorância sobre as coisas da terra ou do céu, eles voltam mais parrudos. Então, orai e vigiai sempre. O que não creio é em fantasmas empacados – tipo Erik, o Fantasma da Ópera - que nunca abandonava seu posto na Ópera de Paris.
     
Essa crônica está parecendo discurso de religioso sem bíblia ou de algum filósofo meia-boca, daqueles que copia o que diz os filósofos consagrados e reproduz como se fossem seus. Vamos mudar o rumo da nossa prosa sobre ser ou não ser. Aí eu me lembro de que Hamlet pai era um fantasma com a sua dúvida To be or not to be. Será que Shakespeare foi o fantasma de Francis Bacon? Há controvérsia. Uma coisa é certa: escrever não é uma tarefa fácil como muitos podem pensar. Por essa causa criar personagens e histórias interessantes exige talento e vocação. Se Shakespeare foi o pseudônimo de Bacon, Alberto Caeiro foi o heterônimo – personagem - de Fernando Pessoa. Em ambos sobrava criatividade. 
       
Mas, na literatura existem os escritores fantasmas – ghostwriters – que escrevem, não só discursos, mas livros ou músicas e o pagante põe seu nome na capa do livro ou CD. Por exemplo, Mozart compôs dezenas de músicas para os seus patrões da época. Diferente disso, dizem que o ghostwriter musical de Charles Chaplin foi David Raksim. Autran Dourado “era a mão que escrevia” os discursos de Juscelino Kubitscheck.  Até as famosas bulas papais foram escritas por um ghostwriter.
       
Pois é, falamos em mudar o rumo da prosa e continuamos no mesmo assunto de fantasma. Machado de Assis diz que o narrador Brás Cubas contou suas memórias póstumas. Então, Brás Cubas foi um fantasma que falava depois de morto. Por falar em fantasma que age depois de morto, Jorge Amado criou o morto mais tarado da literatura: Vadinho, que mesmo sendo defunto, não deixou de atender a safada Dona Flor.  
        
Encerro a crônica da semana com a certeza de que as aparições da fantasmagoria ululante coabitam com a nossa filosofia vã. Porém, não moram em casas ou cemitérios. Fico com a sensação de que alguém escreveu essa crônica e eu (dor) assino embaixo. 

       
Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 01 de fevereiro de 2014.  Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural (raízes.net), PUC TV, sábado, 13h30. Escreve aos sábados no DMRevista.