segunda-feira, 29 de setembro de 2014 | By: Clara Dawn

Ode a Nelson Siqueira

Não sei se o leitor já teve saudade das coisas antigas ao passar por uma casa, uma rua ou qualquer outro lugar capaz de formar uma cadeia de lembranças. Hoje vivi esse momento ao cruzar a faixa de pedestre da Rua 3, no Centro, próxima ao Jóquei Clube de Goiás. No mesmo lugar, em 1960, seguro na mão de meu pai, Zequinha Naves, atravessei a rua com destino à casa do Dr. Nelson Siqueira, já demolida. Hoje em seu lugar existe uma farmácia. Lembro-me de que meu pai dissera que naquela casa morava um colega do fisco que se elegera deputado estadual, pelo PSD de Pedro Ludovico. O motivo da visita seria tratar de algum benefício para a cidade de Palmelo, onde meu amado pai era o Coletor Estadual.

Ao passar por aqui, a saudade dói no fundo da alma. Aprendi tudo com ele: honra, dignidade, amor ao próximo, essas coisas de um homem íntegro. Viveu sua exemplar história  de modo cristão. Enquanto Fiscal de renda, cargo no qual se aposentou, gabava-se de nunca haver emitido um Auto de Infração. Orientava mais do que punia. Se houvesse imposto atrasado esperava pelo recolhimento. Quando havia indício de sonegação fiscal pedia ao contador para corrigir e recolher o valor devido. Morreu pobre, mas com muitos amigos.

Ô de casa! A porta da residência do deputado Nelson Siqueira se abriu. Fomos convidados pela empregada a entrar. Na sala de espera tudo estava limpo e organizado. Um sofá de couro; mesa de jantar enorme coberta com forro de rendas brancas e cadeiras altas; um rádio, à pilha, em detalhes dourados; a cristaleira em estilo clássico combinava com a decoração. O piso encerado brilhava com cheiro de asseio. Tive a impressa, pela mesa grande e a quantidade de cômodos da casa, que ali morava uma família numerosa.

Não demorou e o  Dr. Nelson Siqueira entrou na sala. Recebeu meu pai com alegria e me saudou com carinho. Os dois conversaram sobre assuntos de política. Nem prestei muita atenção. Mas, ouvi quando ele perguntou sobre Santa Cruz, próxima de Palmelo; somente uma légua de distância.  Pensei comigo: Santa Cruz, Potira. Era o apelido da cidade. Jamais soube o motivo.  Entretanto, sabia que nenhum morador gostava de ouvir Potira. Vibrava de forma pejorativa aos ouvidos santa-cruzenses. Terminou a conversa. Os dois se despediram. Já na calçada agarrei na mão de meu pai; cruzamos a rua de volta, rumo à Avenida Anhanguera.

Desde então, sempre que passei por aquela casa recordava aquela visita. Pedro Ludovico, Nelson Siqueira, meu pai, José Naves Martins, o Zequinha. Até que um dia, penso que foi em 2013, uma máquina levantou poeira no trabalho de demolir a antiga casa. Na hora não encontrei motivo que justificasse a demolição de uma casa cheia de histórias para construir um prédio novo. Depois percebi que a modernidade, arrasadora, substitui os valores tradicionais. Paro para pensar no desfecho desta crônica.

Sem noção do modo de como terminá-la, vejo, surpreso, na capa do Diário da Manhã de hoje, quarta-feira, dia 24 de setembro, a notícia da morte do Dr. Nelson Siqueira. Sobrenatural ou não, pela coincidência inusitada, a notícia cai como uma pedra vinda do alto em velocidade crescente. Imagino que tudo tem um fim. Leon de Tolstói narrou a expectativa de Ivan Ilitch diante do sofrimento da morte: “Eu estou caindo... Não adiante resistir”.  

No começo da vida há um ponto de luz; depois, ao fim, essa mesma luz reaparece com prenúncio de que a morte pode ser um recomeço. Essa é a sensação quando a gente vê partir, rumo à grande morada celestial, alguma pessoa dedicada que viveu para servir ao semelhante. Tenho essa impressão do Dr. Nelson Siqueira; bondosa alma.

Aquele lugar, mesmo com prédio moderno, sempre me lembrará meu pai e as boas práticas da vida de pessoas honradas.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista em 26 de setembro de 2014 em Goiânia - Goiás).
segunda-feira, 15 de setembro de 2014 | By: Clara Dawn

Flor de ipê que voa

O que mais tememos é o novo. Aquilo que nos faz sair dos nossos hábitos. Eu odiaria morar em São Petersburgo; Dostoiévski, não. Crime e Castigo é ambientado nessa cidade fria, cinza e perturbada pela culpa de Raskólnikov. E se eu morasse no Rio de Janeiro? Detesto água salgada. Tom Jobim, notívago inveterado, amava o Rio. Ou amava as garotas da praia? Ambas as coisas, penso.
           
Morar em Petersburgo ou no Rio de Janeiro é uma novidade que me assusta; nem o frio cinzento da cidade de Ródia, nem o sol escancarado na areia quente de Ipanema. Contento-me com o tempo abafado seco de Goiânia nesse prenúncio de primavera. Estou a me acostumar com a ideia de, num dia qualquer, morar em Piracanjuba. Lá sou amigo do Mazai e da Fadinha que - na chegada - me esperam na porteira e - na saída - vão até ao mata-burro do Sítio Vale de Quimeras. Quando estão com fome dizem, psiu! Quando vou embora, tchau.
             
Parafuso, um vira-lata tão querido quanto o falecido Loló de Gabriel Nascente, viajou direto para o céu. Antes desse fatídico dia, durante a sua curta existência de sofrimento, Parafuso fora coroado por mim o Rei do Vale. A coroa foi passada a Mazai, um pastor alemão negro e brincalhão que chegou depois. Noutra dia eu sonhei que os cachorros falavam. Do jeito que as coisas vão os cachorros logo vão falar. Nesse dia direi a Mazai para calar seus latidos nas minhas madrugadas. Declamar versos de Fernando Pessoa é melhor. E o pássaro-preto, faça chuva ou sol, cantiga alto no cajueiro em flor.  
            
Lá também moram araras-azuis, canário amarelinho igual ao Piu-Piu e um casal de pirarucus - chamados Boni e Clyde - festeiros das manhãs ensolaradas. Ah, tem um Martim Pescador bem atentado. Noutro dia um canário amarelo voou baixo sob a luz do sol. Disse à Clara: “Eu vi uma flor de ipê amarelo voando”.  Nesta crônica escolhi falar de amenidades. Concordo que o cronista deve refletir a alegria do mundo. Tom Jobim pensa que “a arte tem o papel de refletir o mundo. Ela reflete e é honesta”.
            
Então, viva Bernardo Elis, J.J. Veiga, Dona Belkiss, Carlos Brandão, Siron Franco e Marcos Fayad. Pois é. O que é honesto é simples e direto; a desonestidade, ao contrário, é falsa e dissimulada. Por falar em simplicidade me lembro da pintora Djanira. Ela foi uma artista brasileira famosa que pintou a gente simples das ruas, dos campos e do mar. No fim da sua vida renunciou a tudo, internou-se num convento de freiras e passou a se chamar Teresa do Amor Divino. É dela um poema chamado Viagem. É assim: Eu vi nas cores do marfim/um elefante selvagem/que viera das índias/oferecendo-me caminhos/onde poderia/perigosamente/fechar meus olhos/ e partir, partir.../Mas era pecado/e viajei no pecado/Ao infinito viajei/ e perdi-me no tempo/ que era pecado.
             
Comecei falando de medo do novo e me perdi nessas abstrações da escrita. Mudei o rumo da prosa. Também pudera. Escrever uma nova crônica já não me apavora, nem angustia. É só refletir o que está na alma.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 13h30.
segunda-feira, 1 de setembro de 2014 | By: Clara Dawn

Tempo abafado seco

Noutro dia marquei mais um encontro com meus netos Júlio, Gustavo e Marcus Jr., num restaurante self-service. Nesse restaurante, perto de onde nós trabalhamos, a gente se encontra duas ou três vezes semana. Para ganharmos tempo ao trabalho o almoço é sempre rápido. Mesmo assim ainda sobra um tempinho para as conversas a respeito do cotidiano da cidade grande, onde a miséria e a loucura andam juntas. Existe, nesses encontros informais de avô e netos, uma aura amena e prazerosa.
              
O dia estava cinza, quente, abafado seco, com leve prenúncio de chuva temporã. Quando eles chegaram para o almoço eu já estava sentado longe da televisão colocada para os fregueses habituados a ver televisão na hora das refeições. Estava no horário do TRE com a sordidez política de alguns candidatos. Escolhi uma mesa pequena de quatro cadeiras. Naquele lugar simples com comida caseira, almoço nos dias da semana. Com tantas coisas a fazer nem dá tempo de almoçar em casa. E a comida por quilo custa menos do que em outros restaurantes. Porque com pouco dinheiro faço igual quando se tem um cobertor curto; encolher as pernas para cobrir o corpo.
              
Júlio chega primeiro; rosto jovial marejado de suor, depois de caminhar umas seis quadras até ali. Logo chega o Marcus Jr., que se senta em frente à televisão. Puxa assunto sobre o debate dos presidenciáveis na Band, ocorrido na noite anterior. Expõe sua opinião. Ouço com atenção. Continuo ouvindo com um discreto sorriso quando a opinião bate com a que penso. Por último vem o Gustavo com o porte de soldado cristão das cavalhadas de Santa Cruz de Goiás.
                
Essas conversas com meus netos, que faço questão de acontecer com regularidade, me mantém ligado ao mundo real dos jovens. Conto essa história sem a pretensão de teorizar ou propor filosofia. Falar sobre as engrenagens da realidade é um ato de fé que beira à ficção. Pelo que sei – e sei que nada sei – é assim que os romancistas trabalham sua narrativa. Há uma exigência imperativa: o universo do escritor deve ser verossímil.
               
Mesmo que um raio de fantasia caia na sua cabeça. Tantas coisas estranhas, tantos fatos improváveis acontecem na vida que é difícil de saber o que é a realidade. Esse é o tom realista por trás do texto de Paul Auster ao escrever O Caderno Vermelho. Numa passagem arrebatadora do livro ele conta a história de um menino que andava a seu lado foi atingido por um raio e morreu.
                 
Auster conta que fora a sua primeira e trágica experiência com a instabilidade das coisas. Essa minha história nada tem a ver com essa experiência de Paul Auster. Lembrei-me dessa passagem do livro por um devaneio qualquer. Júlio e Gustavo, sentados do mesmo lado da mesa de quatro cadeiras, quais siameses, desviam o olhar à outra mesa, esta de duas cadeiras. Tanto falo, tanto gesticulo que penso que, desta vez, ficaram desinteressados do que digo. De frente para eles uma moça de olhos verdes, perfeitos e jovens; o colo arfa na brandura do ar parado, abafado seco. Ela fixou o olhar na direção dos dois e sorriu com dentes brancos de esperança.
                
Fingi não ter percebido o flerte. Foi então que a televisão mostrou os gols da rodada com mais uma derrota do nosso amado Vila Nova diante de um grande público. No salão a maioria comentou a triste sina do Tigrão. Mas a alegria do reencontro superou os dissabores do futebol.
               
Lá fora as pessoas se movimentam com suas misérias e loucuras de mãos dadas. Voltei para o interior do restaurante. Tive a sensação de que estava vazio. Era somente a impressão quando percebi que uma multidão vai e vem sem parar; uma parte sem saber aonde ir. Marquei um novo encontro com meus netos.

                 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizestv.net, PUC TV Goiás, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.