segunda-feira, 1 de setembro de 2014 | By: Clara Dawn

Tempo abafado seco

Noutro dia marquei mais um encontro com meus netos Júlio, Gustavo e Marcus Jr., num restaurante self-service. Nesse restaurante, perto de onde nós trabalhamos, a gente se encontra duas ou três vezes semana. Para ganharmos tempo ao trabalho o almoço é sempre rápido. Mesmo assim ainda sobra um tempinho para as conversas a respeito do cotidiano da cidade grande, onde a miséria e a loucura andam juntas. Existe, nesses encontros informais de avô e netos, uma aura amena e prazerosa.
              
O dia estava cinza, quente, abafado seco, com leve prenúncio de chuva temporã. Quando eles chegaram para o almoço eu já estava sentado longe da televisão colocada para os fregueses habituados a ver televisão na hora das refeições. Estava no horário do TRE com a sordidez política de alguns candidatos. Escolhi uma mesa pequena de quatro cadeiras. Naquele lugar simples com comida caseira, almoço nos dias da semana. Com tantas coisas a fazer nem dá tempo de almoçar em casa. E a comida por quilo custa menos do que em outros restaurantes. Porque com pouco dinheiro faço igual quando se tem um cobertor curto; encolher as pernas para cobrir o corpo.
              
Júlio chega primeiro; rosto jovial marejado de suor, depois de caminhar umas seis quadras até ali. Logo chega o Marcus Jr., que se senta em frente à televisão. Puxa assunto sobre o debate dos presidenciáveis na Band, ocorrido na noite anterior. Expõe sua opinião. Ouço com atenção. Continuo ouvindo com um discreto sorriso quando a opinião bate com a que penso. Por último vem o Gustavo com o porte de soldado cristão das cavalhadas de Santa Cruz de Goiás.
                
Essas conversas com meus netos, que faço questão de acontecer com regularidade, me mantém ligado ao mundo real dos jovens. Conto essa história sem a pretensão de teorizar ou propor filosofia. Falar sobre as engrenagens da realidade é um ato de fé que beira à ficção. Pelo que sei – e sei que nada sei – é assim que os romancistas trabalham sua narrativa. Há uma exigência imperativa: o universo do escritor deve ser verossímil.
               
Mesmo que um raio de fantasia caia na sua cabeça. Tantas coisas estranhas, tantos fatos improváveis acontecem na vida que é difícil de saber o que é a realidade. Esse é o tom realista por trás do texto de Paul Auster ao escrever O Caderno Vermelho. Numa passagem arrebatadora do livro ele conta a história de um menino que andava a seu lado foi atingido por um raio e morreu.
                 
Auster conta que fora a sua primeira e trágica experiência com a instabilidade das coisas. Essa minha história nada tem a ver com essa experiência de Paul Auster. Lembrei-me dessa passagem do livro por um devaneio qualquer. Júlio e Gustavo, sentados do mesmo lado da mesa de quatro cadeiras, quais siameses, desviam o olhar à outra mesa, esta de duas cadeiras. Tanto falo, tanto gesticulo que penso que, desta vez, ficaram desinteressados do que digo. De frente para eles uma moça de olhos verdes, perfeitos e jovens; o colo arfa na brandura do ar parado, abafado seco. Ela fixou o olhar na direção dos dois e sorriu com dentes brancos de esperança.
                
Fingi não ter percebido o flerte. Foi então que a televisão mostrou os gols da rodada com mais uma derrota do nosso amado Vila Nova diante de um grande público. No salão a maioria comentou a triste sina do Tigrão. Mas a alegria do reencontro superou os dissabores do futebol.
               
Lá fora as pessoas se movimentam com suas misérias e loucuras de mãos dadas. Voltei para o interior do restaurante. Tive a sensação de que estava vazio. Era somente a impressão quando percebi que uma multidão vai e vem sem parar; uma parte sem saber aonde ir. Marquei um novo encontro com meus netos.

                 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizestv.net, PUC TV Goiás, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.  

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