segunda-feira, 1 de dezembro de 2014 | By: Clara Dawn

Vaga-lumes do céu

              Essa mania de estar sempre perto de mim entontece meus sentidos. Por mais que meu espírito viaje anônimo na noite de sono, continuo dentro de mim após despertar. Acordo pronto a seguir meus sonhos revelados. Hoje é sábado. Olho a cama que amanhece com os lençóis remexidos, amarrotada pelo frenesi de corpos tatuados pela esperança. Também pelas rugas dos pesadelos e das utopias antigas. Espicho os braços; as mãos cruzam dedos estalantes acima da cabeça. Os joelhos crepitam no ajuste dos ossos. Por um momento me lembro de um poema de Pio Vargas: “O ser é espelho, que é imagem. Não se sabe em qual premissa ele empreende sua viagem. Existir fora dele é ser um sol sem paisagem”.

               Depois dessa noite, segue-se o dia normal. O coração, às vezes fraco, outras forte, pergunta se o intervalo do sono, aberto ao espírito, foi bom para a recuperação das emoções guardadas na alma. Os pés que tocam o chão frio andam em círculos procurando a trilha certa do novo dia. Ingratos pés da roça que não se acostumam a morar nos sapatos; querem, ou o chão de terra batida ou, se é para andar calçado, um par de sandálias velhas e confortáveis. O pé esquerdo, mais próximo do coração, dá o primeiro passo; único, universal e definitivo.
               Digo adeus à noite que passou. O presente que chega há de encontrar - no oeste da agonizante jornada diária -  o limiar de uma pausa que dividirá o real do sonho. Enquanto penso no que vou enfrentar, me calo. A memória é o espelho a refletir passagens; a lembrança  retêm as preferidas. Ainda recordo o cume da pequena serra de Porto dos Barreiros, quando de lá saí com meus pais e meus irmãos. Foi o último ponto que enxerguei antes que a jardineira entrasse na mata.
                Associo essa imagem, à outra: de uma criança judia, destinada a Auschwitiz, retirada à força dos braços de sua mãe. Vê, pela última vez, da janela de um trem, o alto dos picos das montanhas da pequena cidade polonesa cobertos de neve.  Essa visão durou tão pouco, mas ficou guardada para os momentos de angústia do menino sobrevivente. Nem as atrocidade que vira na guerra apagaram essas imagens. Assim são as coisas.  O sofrimento, em si, não apaga a beleza das experiências que se foram e nem as do porvir.
                 Perplexo diante das agruras da vida, o homem pergunta se o fardo que carrega na couraça do corpo físico é ancestral ou de uma noite apenas? A ideia do tempo que ruge em nossos ouvidos, é, na realidade, pontos luminosos a nos guiar, como se fossem vaga-lumes no céu. A força imagética que surge do passado movimenta e direcionam nossos pés, em círculos, pelo ar, pelo chão, por qual caminho escolher, até encontrar a porta do sol ou as pedras da caminhada. Tem um poema de Emily Dickinson que diz assim: “Essa é a hora de chumbo – que se relembra, se superada, como alguém enregelado recorda a neve: Primeiro, o frio – depois, o torpor – e, então, o deixar-se ir”.
               
                   Já que falei em “corpo físico”, a linguagem espiritualista utiliza outra forma da crença na reencarnação. Essa é a filosofia espírita: primeiro, a encarnação, depois, o sofrimento de viver presa à gravidade terrena e, então, a liberdade de voar com a Luz.

                Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, sábado, 12h30, reprise domingo, 23h00. Escreve aos sábados no DMRevista.

Jogo de palavras

Putz! Lá vou eu nessa manhã cinzenta. Cadê a luz do meu dia? A cabeça deste cronista fica na nuvem, mas sei que acima da garoa tem um sol cheiinho de raios luminosos a brilhar para todos, em qualquer canto da terra. O meu primeiro passo é canhoto. Penso que é por isso que estou meio atrapalhado para fazer as coisas do dia a dia. O piloto automático não funciona.
        
Vem, sol! Abre as cortinas do novo dia. Acorda os meus sentidos. Ando com os passos cadenciados. Pé canhoto... Pé direito... Assim, caminho pela casa. Tem outro jeito de cumprir nossos deveres cotidianos, senão o de cada um na sua hora e lugar? Claro que não. Se for noutro ritmo o tombo é certo.  
          
Dizem que começar a caminhada com o pé esquerdo dá azar. Bato três vezes na madeira para espantar a alvorada gris que nubla o meu pensamento. Na hora de escovar os dentes, ponho creme de barbear pensando que é dentifrício.  Faço o nó da gravata antes de vestir a camisa. Por pouco não saio de paletó e cueca; sem a antiga calça azul. Através da janela vejo os carros andando de ré. Sei não, mas me sinto confuso para fazer o meu trabalho.
          
Putz! Logo hoje que tenho de enviar minha crônica para o Diário da Manhã;  a rotina do escritório e, ainda, gravar o programa Raízes Jornalismo Cultural, na PUC TV? Tenho que equilibrar tudo para dar conta dessas tarefas. Talvez uma música ajude a pôr a casa em ordem. Surge a voz doce de Marlene: “Lata d’água na cabeça/ lá vai Maria, lá vai Maria/ Sobe o morro e não se cansa? Lá vai...”.
          
Assim segue a marchinha de carnaval. Foi bom para começar a pensar melhor. Para espantar burrice o humor faz melhor. Lembro-me de uma história de Mário Quintana, contada por Juarez Fonseca, no livro Ora Bolas.
         
Encarregada de pegar Quintana no Hotel Magestic, Ângela Moreira chegou antes da oito da manhã. Dali iriam para o estúdio da ISAEC, na Rua Senhor dos Passos, onde estava sendo gravada a Antologia Poética. No carro, depois de um longo silêncio e um bocejo, o poeta pede desculpas:

Eu sempre acordo meio burro...
Eu, não! Eu já acordo a mil.
E ele, com sedutora condescendência:
Ah!... O problema é que pessoas assim ficam burras o dia inteiro.
          
Já que falei em televisão, aqui vai outra de Mário Quintana, uma das 130 historinhas. Sem lengalenga:
          
Em 1978, enquanto aguardava uma entrevista que seria feita pela TV Gaúcha, Quintana, quieto, observava a equipe de televisão se preparar.
          
Era moda, na época criada pela TV Globo, até hoje seguida por muitos repórteres, encostar o microfone na boca do entrevistado e perguntar: “Quem é o fulano?”. Para facilitar a vida do editor, ele deveria responder: “Sou o ator fulano de tal, um homem do povo, que compra em supermercado, entra no ônibus, acredita no mundo novo, patati, patatá”.
         
A repórter da TV Gaúcha foi de primeira:
        
Quem é Mário Quintana?
Surpreso, quase incrédulo diante da pergunta, ele só achou uma saída:
Sou eu, minha filha.
         
Pronto. A música de Marlene e o humor do poeta Mário Quintana devolveram-me a luz que faltava. Agora já posso enfrentar o dia com o sol que aparece na expectativa de mais um dia.

Seja bom ou ruim, lá vou eu...  

         
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.