segunda-feira, 1 de dezembro de 2014 | By: Clara Dawn

Jogo de palavras

Putz! Lá vou eu nessa manhã cinzenta. Cadê a luz do meu dia? A cabeça deste cronista fica na nuvem, mas sei que acima da garoa tem um sol cheiinho de raios luminosos a brilhar para todos, em qualquer canto da terra. O meu primeiro passo é canhoto. Penso que é por isso que estou meio atrapalhado para fazer as coisas do dia a dia. O piloto automático não funciona.
        
Vem, sol! Abre as cortinas do novo dia. Acorda os meus sentidos. Ando com os passos cadenciados. Pé canhoto... Pé direito... Assim, caminho pela casa. Tem outro jeito de cumprir nossos deveres cotidianos, senão o de cada um na sua hora e lugar? Claro que não. Se for noutro ritmo o tombo é certo.  
          
Dizem que começar a caminhada com o pé esquerdo dá azar. Bato três vezes na madeira para espantar a alvorada gris que nubla o meu pensamento. Na hora de escovar os dentes, ponho creme de barbear pensando que é dentifrício.  Faço o nó da gravata antes de vestir a camisa. Por pouco não saio de paletó e cueca; sem a antiga calça azul. Através da janela vejo os carros andando de ré. Sei não, mas me sinto confuso para fazer o meu trabalho.
          
Putz! Logo hoje que tenho de enviar minha crônica para o Diário da Manhã;  a rotina do escritório e, ainda, gravar o programa Raízes Jornalismo Cultural, na PUC TV? Tenho que equilibrar tudo para dar conta dessas tarefas. Talvez uma música ajude a pôr a casa em ordem. Surge a voz doce de Marlene: “Lata d’água na cabeça/ lá vai Maria, lá vai Maria/ Sobe o morro e não se cansa? Lá vai...”.
          
Assim segue a marchinha de carnaval. Foi bom para começar a pensar melhor. Para espantar burrice o humor faz melhor. Lembro-me de uma história de Mário Quintana, contada por Juarez Fonseca, no livro Ora Bolas.
         
Encarregada de pegar Quintana no Hotel Magestic, Ângela Moreira chegou antes da oito da manhã. Dali iriam para o estúdio da ISAEC, na Rua Senhor dos Passos, onde estava sendo gravada a Antologia Poética. No carro, depois de um longo silêncio e um bocejo, o poeta pede desculpas:

Eu sempre acordo meio burro...
Eu, não! Eu já acordo a mil.
E ele, com sedutora condescendência:
Ah!... O problema é que pessoas assim ficam burras o dia inteiro.
          
Já que falei em televisão, aqui vai outra de Mário Quintana, uma das 130 historinhas. Sem lengalenga:
          
Em 1978, enquanto aguardava uma entrevista que seria feita pela TV Gaúcha, Quintana, quieto, observava a equipe de televisão se preparar.
          
Era moda, na época criada pela TV Globo, até hoje seguida por muitos repórteres, encostar o microfone na boca do entrevistado e perguntar: “Quem é o fulano?”. Para facilitar a vida do editor, ele deveria responder: “Sou o ator fulano de tal, um homem do povo, que compra em supermercado, entra no ônibus, acredita no mundo novo, patati, patatá”.
         
A repórter da TV Gaúcha foi de primeira:
        
Quem é Mário Quintana?
Surpreso, quase incrédulo diante da pergunta, ele só achou uma saída:
Sou eu, minha filha.
         
Pronto. A música de Marlene e o humor do poeta Mário Quintana devolveram-me a luz que faltava. Agora já posso enfrentar o dia com o sol que aparece na expectativa de mais um dia.

Seja bom ou ruim, lá vou eu...  

         
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista. 

0 comentários:

Postar um comentário