segunda-feira, 17 de novembro de 2014 | By: Clara Dawn

Dualidade

Meus olhos não perdoam essa Goiânia com mais de um milhão e meio de habitantes. Cadê aquela Goiânia de 200 mil almas? Num pequeno espaço de tempo - comparado ao das grandes cidades - o buraco negro de prédios de concreto engoliu as minhas certezas.  Em que mundo se esconde as gargalhadas das raparigas nas praças e ruas; no contínuo vaivém de eras passadas?
                 Ouço, vindo do recôndito da metrópole, o choro abafado das mães diante do mal das drogas que atormentam os nossos jovens. Prefiro as crianças sujas e descalças brincando na enxurrada; jogando finca; tocando pião; as mãos sujas de terra e manga madura; ou crianças alçando pipa aos céus de eternas estrelas. Prefiro assim, à habilidade da primeira infância no videogame ou aos dedos ágeis no teclado de um Iphone. Avoco Fernando Pessoa: “Brinca, criança, brinca! Brinca pegando numa pedra que te cabe na mão”.
               Digo não a esta Goiânia de trânsito nervoso, prefeito e vereadores que se escondem nos gabinetes, alheios à miséria e ao sofrimento das ruas. Não ao insensato desprezo às raízes da capital. Bendigo a tradição da cultura de respeito ao outro.
                Existem tantas palavras banalizadas que nem sei o que representam nesse jeito egoísta da cidade grande: verdade, mentira; gratidão, ingratidão; amor, desamor. A dualidade do sentimento permanece confusa quando decodificam as palavras.  Apenas a poesia - que aviva a alma arredia do homem - é capaz de interpretar o verdadeiro significado das palavras.  Quando inspirado pelo espírito, o poeta solta as mãos dos joelhos cruzados para alçar vôos bem altos.
                Escrever coisas assim, da memória da cidade ou de reminiscências do verbo, é parar o tempo. Pois, que o tempo pare! Assim a fantasia estanca as dores de uma cidade que cresce, mas perde a aura sutil das certezas. Nesta madrugada insone, a chuva de novembro cai deslizando pelas cortinas do céu. Do alto da janela do prédio onde moro, o vento leste sopra o manto de chuva que balança no espaço vazio, as almas trançadas com fios de renda; de cor leitosa e translúcida.
                A miríade dos pingos que, juntos, caem céu abaixo fazem ruído uníssono quando tocam o telhado de amianto. Bem diferente do romântico gotejar das lágrimas que se jogam sobre as telhas antigas; feitas de barro. Depois as gotas formam pequenos regos até chegar às ruas; desaparecem nos bueiros; submergem nos córregos que deságuam no Rio Meia Ponte. E o Vale se enche de bênçãos.
               Mexo nos óculos para ajustar a chuva à chuva do pensamento. Um pequeno toque muda o ângulo do que enxergo. O grau da memória vai a outros mundos; grandes e pequenos universos imbricados.
              Ás vezes me perco ante as portas de Deus.
  
             Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raizesjornalismocultural, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.                

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