segunda-feira, 5 de janeiro de 2015 | By: Clara Dawn

Uma pedra que cai

Não sei se o leitor já teve saudade das coisas antigas ao passar por uma casa, uma rua ou qualquer outro lugar capaz de formar uma cadeia de lembranças. Hoje vivi esse momento ao cruzar a faixa de pedestre da Rua 3, no Centro, próxima ao Jóquei Clube de Goiás. No mesmo lugar, em 1960, seguro na mão de meu pai, Zequinha Naves, atravessei a rua com destino à casa do Dr. Nelson Siqueira, já demolida. Hoje em seu lugar existe uma clínica. Lembro-me de que meu pai dissera que naquela casa morava um colega do fisco que se elegera deputado estadual, pelo PSD de Pedro Ludovico. O motivo da visita seria tratar de algum benefício para a cidade de Palmelo, onde meu amado pai era o Coletor Estadual.

Ao passar por aqui, a saudade dói no fundo da alma. Aprendi tudo com ele: honra, dignidade, amor ao próximo, essas coisas de um homem íntegro. Viveu sua exemplar história  de modo cristão. Enquanto Fiscal de renda, cargo no qual se aposentou, gabava-se de nunca haver emitido um Auto de Infração. Orientava mais do que punia. Se houvesse imposto atrasado esperava pelo recolhimento. Quando havia indício de sonegação fiscal pedia ao contador para corrigir e recolher o valor devido. Morreu pobre, mas com muitos amigos.

Ô de casa! A porta da residência do deputado Nelson Siqueira se abriu. Fomos convidados pela empregada a entrar. Na sala de espera tudo estava limpo e organizado. Um sofá de couro; mesa de jantar enorme coberta com forro de rendas brancas e cadeiras altas; um rádio, à pilha, em detalhes dourados; a cristaleira em estilo clássico combinava com a decoração. O piso encerado brilhava com cheiro de asseio. Tive a impressa, pela mesa grande e a quantidade de cômodos da casa, que ali morava uma família numerosa.

Não de morou e o  Dr. Nelson Siqueira entrou na sala. Recebeu meu pai com alegria e me saudou com carinho. Os dois conversaram sobre assuntos de política. Nem prestei muita atenção. Mas, ouvi quando ele perguntou sobre Santa Cruz, próxima de Palmelo; somente uma légua de distância.  Pensei comigo: Santa Cruz, Potira. Era o apelido da cidade. Jamais soube o motivo.  Entretanto, sabia que nenhum morador gostava de ouvir Potira. Vibrava de forma pejorativa aos ouvidos santa-cruzenses. Terminou a conversa. Os dois se despediram. Já na calçada agarrei na mão de meu pai; cruzamos a rua de volta, rumo à Avenida Anhanguera.

Desde então, sempre que passei por aquela casa recordava aquela visita. Pedro Ludovico, Nelson Siqueira, meu pai, José Naves Martins, o Zequinha. Até que um dia, penso que foi em 2013, uma máquina levantou poeira no trabalho de demolir a antiga casa. Na hora não encontrei motivo que justificasse a demolição de uma casa cheia de histórias para construir um prédio novo. Depois percebi que a modernidade, arrasadora, substitui os valores tradicionais. Paro para pensar no desfecho desta crônica.

Sem noção do modo de como terminá-la, vejo, surpreso, na capa do Diário da Manhã de hoje, quarta-feira, dia 24 de setembro, a notícia da morte do Dr. Nelson Siqueira. Sobrenatural ou não, pela coincidência inusitada, a notícia cai como uma pedra vinda do alto em velocidade crescente. Imagino que tudo tem um fim. Leon de Tolstói narrou a expectativa de Ivan Ilitch diante do sofrimento da morte: “Eu estou caindo... Não adiante resistir”.  

No começo da vida há um ponto de luz; depois, ao fim, essa mesma luz reaparece com prenúncio de que a morte pode ser um recomeço. Essa é a sensação quando a gente vê partir, rumo à grande morada celestial, alguma pessoa dedicada que viveu para servir ao semelhante. Tenho essa impressão do Dr. Nelson Siqueira; bondosa alma.

Aquele lugar, mesmo com prédio moderno, sempre me lembrará meu pai e as boas práticas da vida de pessoas honradas.