terça-feira, 14 de julho de 2015 | By: Unknown

Marcado para morrer


       Assisto na televisão as cenas do documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho.  Viajo de volta ao tempo em que andava de trem entre Araguari a Goiânia. Em uma das cenas do filme, um grupo de crianças desce do trem junto com mãe camponesa com uma trouxa de roupas nas costas; tipo retirante.  Atrás, ia o pai com uma surrada mala de couro cru. O filme, pensado inicialmente, para mostrar a luta no campo, narra também o assassinato de João Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa de Sapé, interior da Paraíba.

       Aquela passagem de crianças, ainda de calças curtas, em fila, saltando as escadas do vagão, lembra a mesma em que eu descia, antes de todos, na estação ferroviária para contar, de um a sete, meus irmãos menores. Tinha medo de que um deles pudesse se perder no meio da multidão de viajores apressados.

        Meu pai começara a vida trabalhando como lavrador em Porto dos Barreiros, Minas Gerais. Até meados do século passado havia muita pobreza no campo, daí começou a migração para os grandes centros urbanos. Sou pedaço dessa história cigana que fugiu da “precisão” para dias melhores. Tenho um pé na roça e minhas raízes continuam fincando ao pé de um mourão, hoje submerso pelas águas do Rio Paranaíba, com meu nome desenhado a canivete por meu pai.  

        Pois é, Porto dos Barreiros, a minha Atlântida Perdida, está coberta pela represa de uma hidrelétrica. A cidade mudou de lugar e minha alma vaga por terras que jamais sonhara visitar. Por essa causa - penso que as recordações da infância afligem a vida de todo mundo -  uma cena ou uma palavra puxa a lembrança de algo que se foi.  Noutro dia, Tio Galdino, o pai do filho do homem, se lembrou da época em que eu, já morando em Goiânia, passava as férias escolares em Porto dos Barreiros; chegava sempre com uma capanga de objetos pessoais nas mãos. Aí, comparando os períodos, percebi a diferença daquele tempo. Dá dó a pureza dos meninos da minha geração.

        Nem uma mala para levar as pobres roupas. Não me importava a simplicidade em que vivia. Ao contrário, era feliz e alegre; ingênuo e bobão, da mesma forma que sou hoje; o bobão da Lorinda que acredita em todos. Deixa essa conversa para outra hora. 
        O documentário feito pela equipe da UNE Volante é um retrato irretocável das lutas sociais dos pobres explorados, à última gota de suor, pelos ricos. Os governos passam e tudo continua igual. O número de pessoas pobres aumenta na mesma proporção que o dos ricos. A vida puxa uns para cima da arrogância e outros abaixo da linha da dignidade. E o pião da existência continua girando.
    
        Nesta manhã de sexta-feira, ainda com o ar fresco da frente fria que invadira Goiânia no meio da semana, uma mulher pequena e magra, vestes maltrapilhas, varre a calçada da Caixa Econômica Federal, próxima à Praça Tamandaré, Setor Oeste.

        Logo percebo que não é uma gari da prefeitura.
        
         - Bom dia. Falei resoluto.
     
         Ela não respondeu; sequer olhou para mim.

        “Parece doida”, falei com meus botões.

         Lembrei-me de Cachoeira, a doida de Palmelo que usava roupas encardidas e exalava cheiro de alho mascado. Cachoeira falava com espíritos; discutia calorosamente com as vozes do além. Eu não acredito em espíritos falantes, mas confio na santa doidice dos doidos.

          Também creio no zunzunzum cósmico de que estou marcado para morrer.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 11 de julho de 2015)          

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, wwwraizesjornalismocultural.net, PUC TV Goiás, sábado, 12h30. Reprise, domingo, 23h00. Escreve aos sábados no DM Revista.