segunda-feira, 31 de janeiro de 2011 | By: Doracino Naves

Aprendiz de Sabiá


Sonhei que havia morrido. Deus decretara o meu despejo da terra sem acrescentar o tempo das pescarias e folguedos que a cultural popular diz que é lambuja. O homem teme o passar do tempo. Muitos levam a vida em câmera lenta. Prolongar o tempo no mundo dos viventes, além do que foi combinado no alto, é difícil. O ser humano espera o momento do ócio para descansar e, depois trabalha mais no sentido de pensar menos na finitude. É o jeito de enrolar a morte. Sísifo, da mitologia grega, carregava pedras para o topo da montanha. Ao chegar ao cume a sua pedra desembestava ladeira abaixo. O mortal Sísifo recomeçava o seu trabalho embaixo do monte. Assim, carregando pedras, o homem gasta o seu tempo de vida até chegar a sentença final.
A  morte, implacável, aponta os seus dedos secos;  o frio da foice e o hálito gelado do esqueleto dizem sem dó:

            Chegou a sua hora!

            Aconteceu assim no meu sonho. Pensando no fim da luz do sol enfiei a cabeça embaixo do travesseiro e, paralisado na cama, esperei o que aconteceria em seguida. Nisso ouvi o canto do sabiá na laranjeira. Senti alívio; o paraíso é igual à terra!. Pensei de olhos fechados:

        No paraíso tem sabiá?

       Tentei imitar o sabiá para me acostumar com a nova morada; não conseguia assoviar.  A sinfonia do paraíso deve ser regida por Mozart. Fui desafinado na vida e também na música do céu. O que vou fazer agora? Nisso ouço o latido da cachorrinha vira-lata que não dá sossego aos meus ouvidos. Late a noite toda por qualquer motivo. Mas hoje gostei do seu latido estridente.

       Estou vivo! Descubro a cabeça e, por uma fresta da cortina, enxergo uma clara manhã. Este não foi o meu dia de bater com as botas; mas sinto que alguém tombou à noite em algum lugar do mundo. Muitos morrem todos os dias e de todas as formas.

       Pulo da cama com a certeza da morte de uma parte dos sete bilhões de pessoas que povoam a terra. Outros nasceram. A pobreza  da alma é ignorar a certeza da morte.  Agarra com unhas e dentes o viver do corpo, mesmo sabendo que a pedra vai cair quando estiver perto do cume. O dever nosso de cada dia é colocá-la no ombro e subir de novo a colina. Vai de novo, e muitas outras vezes, até chegar o dia de irmos embora dessa vida. Mas a pedra da perfeição jamais chegará ao topo.

      Desconfiado, abro a janela e a gatinha branca espoja-se ao sol. Também espreguiço e celebro. Ainda penso no meu sonho. Vou para a rua procurar o arabesco da minha sombra. Viajo pelo Bairro Popular, percebo os desenhos imaginários marcados no meu tempo. Meu velório, ao som de What Wonderful World, com Louis Armstrong, há de ser uma alegre despedida para uma viagem ao misterioso mundo dos espíritos. Com direito a festa no céu (será?) e muitas risadas das minhas gafes e dos meus equívocos. “Eu ouço bebês chorando, eu os vejo crescendo/Eles vão aprender muito mais do que eu jamais vou saber”.

     A minha teoria acerca do mundo é superficial. Sou um idiota que passa a vida imaginando-me suficiente para revogar a lei fatal e viver mais. Assim é o ser humano. Digo à amada que os momentos de ternura foram  os instantes da verdade suprema. Aos amigos peço não disfarçar os meus  defeitos.
     Por amor, não me considerarem uma pessoa melhor do que sou quando morrer. A morte não apaga os defeitos.
     Mando meu recado à distinta senhora:
     Pela graça do oriente eterno, chama-me com ternura, sussurrando; mesmo sendo, eu, um arrogante que pensa que é capaz de mudar o planeta de lugar.

      Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.