segunda-feira, 18 de maio de 2015 | By: Clara Dawn

No campo tem curriola



                        
 “Periquito tá roendo o coco da guariroba/Chuvinha de novembro amadurece a gabiroba”. Esse é o começo da trilha sonora mais conhecida de Goiás. Nossas manhãs de sábado perdeu, pela retirada do programa Frutos da Terra do ar, o cheiro e o gosto das frutas do cerrado. Esses sentidos eram despertos pelos acordes e os dois primeiros versos da música do mesmo nome do programa semanal; última cantada de João Caetano na TV Anhanguera. Fernando Perillo, primeiro a gravá-la, Genésio Tocantins, vocal do Musika, Marcelo Barra e Pádua também cantaram o hino do programa.
                         
A cultura popular sente a perda irreparável do programa mais goiano da história da televisão. Frutos da Terra continua na nossa imaginação. Mas Goiás perdeu a mais importante trincheira de resistência cultural para a enxurrada da aculturação globalizada. Imagino que um programador da Rede Globo decretara: a televisão regional que se dane!
                         
Os olhos e ouvidos da maioria expressiva no estado - a que mora no interior ou os filhos e netos que vivem em Goiânia - conservou seus hábitos nas manhãs comandadas pelo mestre Hamilton Carneiro. Quem veio de fora também foi tocado pelas nossas tradições e a simplicidade arrebatadora de Hamilton Carneiro.  Ele teve a companhia de um timaço: Carmo Bernardes, Bariani Ortencio, músicos e contadores de causos; Geraldinho, Nilton Pinto, Tom Carvalho e Ostecrino Lacerda. A tradição goiana ganhou, na força daTV, a magia da roça expressa no jeito goiano de viver. “E não tem nada mais doce que araçá dessa terra”.
                       
Ainda ecoa no sertão do Brasil Central a música  composta por Genésio Tocantins e Hamilton Carneiro para abrir o programa mais longevo da televisão goiana. 32 anos e 1403 programas feitos com o olhar criterioso do apresentador. Um acervo e tanto, não é, Hamilton?  Nesse brejo tem ingá.

Pois é. Frutos da Terra tem as mais belas imagens do povo de Goiás, retiradas da sensibilidade de ouvir e perceber o outro. Hamilton faz o cruzamento de frutas do cerrado com passarinhos para obter gorjeios e canções; olhar seráfico na escolha de seus convidados. Mágica do poeta Manoel de Barros, o menino do mato que fazia parte da natureza; imaginou uma formiga ajoelhada na pedra. A canção de Hamilton é a metáfora maravilhosa  da fartura do cerrado.

A TV Anhanguera subtraiu do telespectador o direito de acesso às nossas raízes; Frutos da Terra foi para a guilhotina. Talvez seja a hora de os movimentos populares irem para a rua pedindo mais cultura. Por que não? Cultura também é um direito do cidadão.

Noutro dia, em Piracanjuba, Maria, uma mulher comum, do povo, se dizia triste por causa do fim Frutos da Terra.

- Coitado do Hamilton, ouvi falar que ele está muito doente. Eu oro por ele com um galho de arruda pedindo a Deus para lhe repor as virtudes do corpo.
                     
Respondi:

- Hamilton está bem de saúde; firme no trabalho da sua agência de publicidade. Continue orando, pois todos precisam de prece.
                      
Mestre Hamilton, fazemos um pedido: volta com o programa Frutos da Terra, mesmo que seja em outra emissora. Os artistas, sem você a divulgá-los, perderão shows e a oportunidade de mostrar a força de uma cultura rica e diversificada.
                   
O público, excluído das decisões, perde mais. Certamente que uma pesquisa feita em todo o estado de Goiás mostraria a grande audiência do seu programa. Talvez outra emissora já tenha percebido a falta que você faz com o seu Frutos da Terra.
                  
Aí o rumo das coisas pode ser diferente.
                   
“Tem uns pés de marmelada depois que passa a pinguela...”.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Sábado, 16/05/2015 - em Goiânia - Goiás)
sexta-feira, 15 de maio de 2015 | By: Clara Dawn

Simão manqueba

         

Aos dezesseis descobrimos coisas maravilhosas. Alguém pode ter uma experiência de vida inusitada antes dessa idade. Mas, só aos dezesseis anos isso se eterniza, sublima ou passa à memória. Foi assim com Simão, o Sem Caráter, personagem que já me deu muito trabalho.  Na última vitória do Anápolis sobre o meu Vila Nova, ele me aparece no Serra Dourada para dizer que o Tigrão iria perder o jogo. Batata! 3 a 1 para o Galo da Comarca.

       Quando fez dezesseis, Simão Sem Caráter foi à Zona. Na antiga Avenida Bahia, em Campinas, iniciara a sua vida sexual com uma prostituta do baixo meretrício de Goiânia. Ele dizia que a Zona da elite ficava na Rua P-16. Preferia puta pobre por ser mais fogosa. E o preço era menor. As putas da Bahia não pediam Cuba Libre que custava dez cruzeiros; Caipirinha, sim, custava só um. Jamais pagaria Cuba Libre a uma puta.

        Com dezesseis viu a ditadura militar assumir o governo do Brasil. Nem comunismo, nem capitalista; soviéticos ou americanos, farinha do mesmo saco. Em uma dessas visitas ao prostíbulo viu um par de muletas encostadas no muro de entrada da casa de Dilurdes. Jogou-as no quintal baldio e entrou certo de não haver testemunha. Lá dentro, olhou em volta para saber quem poderia ser o dono; permaneceria na sala até descobrir. Nisso chegou Pedro Montanha, um policial civil forte e violento . Muita gente tinha medo das reações intempestivas de Montanha. Com o pé direito engessado se apoiava em Dilurdes.

        “Eis o dono das muletas.” Tremeu de medo só em pensar que alguém poderia tê-lo visto no malfeito.

         Ficou quieto alisando as pernas de uma mulher com cintura de tanajura. Logo ouviu a explosão irada de Pedro Montanha.

        - Qual foi o filho da mãe que pegou minhas muletas?!!

        Diz a cultura popular que o bom cabrito não berra. Simão ficou no seu canto, com a eterna cara de peixe morto; jeito manqueba de ver o mundo; sem coragem para assumir nada; indeciso, em cima do muro. Deixava a peteca cair sem remorso. Um alvoroço dos infernos se instalou na putaria. Gente para todos os lados e nada de encontrar as muletas. Até o cafetão Jair saiu à rua para procurar. Ninguém as encontrou, embora todos procurassem até em lugares antes procurados. O medo era visível.

         Montanha espumava a boca de ódio; as veias do pescoço dilatavam a cada acesso da fúria.  
     
        -Vou matar o engraçadinho que fez isso.

        Simão Sem Caráter, um monte de merda inqualificável, permanecia inerte. Agora com a mão atrevida na cinturinha de pilão. Mesmo na desordem a casa das damas continuava a funcionar. Percebendo que Simão não ia render nada, a acompanhante preferiu encontrar um homem com dinheiro para gastar.

          Outra mulher saiu do quarto; terminara o seu serviço.

         - Por que essa gritaria?

         Dilurdes explicou o acontecido.

        - Ninguém sabe onde foram parar as muletas de Pedro Montanha.
        - Eu sei onde elas estão.

       Chamou Jair.

        - Vamos ali. Eu vi um homem jogá-las no quintal ao lado.

       Montanha esperou a mulher devolver as muletas.

        - Quem fez isso?

        Simão se moveu com indiferença.  A mulher respondeu.

        - Não sei. Estava escuro; vi apenas o vulto de um homem. Não sei dizer mais nada.

        Pedro Montanha saiu inconformado. Antes de ir embora ameaçou:

        -Ainda vou descobrir quem foi o safado. Aí então...

        Simão coçou a cabeça.

        Viu a mulher que encontrara as muletas chegar mais perto.

         -Paga um cuba, meu bem?
       
(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista em maio de 2015)