domingo, 22 de abril de 2012 | By: Doracino Naves

Crônica Vagabunda

Estou empilhado de agonias antes de começar essa crônica vagabunda. Antes de vagabundear pela cidade ela viaja pela minha cabeça até achar uma forma de se expressar. Simão Sem Caráter, o eterno filho da indecisão, pergunta sem rodeios:

- E aí, qual o problema?

Procuro o fantasma de Simão que se esconde nas brumas das recordações. Respondo sem falar, esperando meus dedos tangerem o teclado.

- O problema é essa história bêbada, errante, nômade, que insiste em andar à toa pelos mais recônditos lugares da minha mente.

Pronto. A pergunta de Simão Sem Caráter soa como uma provocação e um estímulo para começar a minha crônica semanal. E o primeiro “problema” chega com o “para quem a gente escreve?” ou então, “por que escrevo?”.  Tenho alguns amigos que se tornaram meus leitores fiéis. Outros dizem que leram, mas nem se recordam do tema. Assim é a realidadedo cronista.

Jorge Luis Borges, poeta argentino, dizia que o seu grupo de leitores era tão pequeno que não incluía nem ele mesmo; jamais lia os seus textos com medo de sentir vergonha do que tinha feito. Esse sentimento do ridículo faz bem ao escritor. Talvez o pior defeito de um escriba seja se achar suficiente em seu texto.

Simão Sem Caráter volta a me incomodar. Quer contar uma história. Diz que nasceu no ano de 1948, em Vale das Águas, uma cidadezinha à beira do Rio Araguaia. A maioria dos habitantes fora constituída de pescadores que vendiam peixes em Aruanã. Seu pai era um maranhense que chegara a pé na cidade; a mãe, bela, descendia dos índios Carajás. Seu pai, muito bonito, era altivo, forte, mas vivia de um jeito ameaçador. Bebia muito e era valente, dava medo. A mãe, muito submissa, vivia cuidando da casa.

Simão tinha um amigo inseparável, Adolfo, meio surdo, que vivia lhe perguntando se ouvia bem a algazarra dos pássaros ou o ruído da mata. O som de um trovão, por exemplo, que chegava abafado aos ouvidos do amigo, incomodava lhe a ponto de encolher os ombros e tapar os ouvidos. Em compensação Simão, míope, não via bem a forma das coisas vistas de longe. Os dois se completavam.

- Eu ouvia bem, ele enxergava longe.

Nas pescarias, então, enquanto Simão ouvia o barulho da água, dos peixes e da floresta, Adolfo via nitidamenteo que se passava à sua volta. Os dois cresceram juntos até se tornarem rapazes.O estranho é que nunca soube que Adolfo tinha uma família.

De volta para casa numa tarde quase-noite, depois de andar horas à procura de seu pai bêbado que se recusara em voltar com ele, ouviu o grito da sua mãe vindo da casa construída de pau-a-pique à beira do rio. Apressou os passos a tempo de vislumbrar um vulto mergulhando na água azul de junho. Sua miopia lhe impedira de ver melhor. Chegou a tempo de ver a mãe ainda agonizando. Com o corpo nu, dilacerado, inclinou a cabeça ao rio. A mão direita apontou naquela direção e caiu na areia ainda quente do sol. Era tarde. Estava morta.

As moscas varejeiras, arautos da putrefação,zuniam sobre o corpo da mulher. Um urubu solitário, talvez a sentinela do grupo, pousou no pequizeiro sem flor. Seu pai, ainda trespassado de pinga, chegou ruidoso à porta do casebre. Pareceu nem se abalar com a tragédia.

- Foi o boto quem fez isso. Ela matou a sua mãe e fugiu.

Adolfo também desaparecera; nunca mais foi visto por Simão. O resto é silêncio.
terça-feira, 17 de abril de 2012 | By: Doracino Naves

A poesia bole com os astros

Nem a linguagem é suficiente para entender o coração. A música, por exemplo, é uma expressão humana eloquente, como são os chamados dos pássaros ou as marcas deixadas pelos lobos para delimitar o seu território. Tampouco os cinco sentidos são capazes de perceber o que está no coração do outro. Não exploramos o mundo cheirando tudo o que vemos como fazem os outros animais. A comunicação é uma forma de caminhar juntos e desenvolver formas de expressão dos sentimentos. Desatentos ao outro, nem sempre captamos o que vai na sua alma.



A palavra exige sinais; embora isso não seja suficiente para tocar as emoções. O gungunar dos homens, se não vira companhado de luz, se perde no ar como os sons de uma perereca no pote. De todas as formas de manifestação da alma, a escrita é a que sublima a linguagem.Seguindo a trilha de Homero, em sua Ilíada, a escrita também pode trazer a marca de algo arrepiador. Mas, sinceramente, para que serve a palavra escrita?Aqui eu lembro uma crônica do Luiz Fernando Veríssimo que considera Pelé o melhor professor de português do Brasil. Pelo fato de que tudo o que Pelé fazia em campo era uma progressão para o gol. Mesmo que ele fizesse uma besteira a caminho do gol teria sido por obrigação de ofício. Escrever, então, é mexer nas balizas do universo e atingir o objetivo colimado.



A poesia bole com os astros, toca alua e move as estrelas. O poeta, esse encantador de palavras, vai mais longe.Desperta sonhos e faz o leitor viajar pela magia do verbo, ao som de Alexandre,de Debussy. Gosto de ouvir o poeta dentro da minha própria cabeça. Não gosto de ouvir um poeta declamar o seu próprio poema. É desconexo e humilhante. Soa estranho quando comparado à nossa percepção sobre a ideia do autor. O melhor poema aos nossos ouvidos é o que é lido, sem palavra, ao som de um fundo musical, real ou imaginário.



Mas, fora o sonho, escrever é uma temeridade. Às vezes fico com a impressão que o meu escrito puxa a orelha de alguém. Aí puxo a minha própria para não errar mais nisso. Nessa linha de pensamento, então, ler é bisbilhotar o que o outro escreve; espiar os sentimentos do escritor. Quem escreve quer ser lido, bisbilhotado; que o seu mundo de palavras seja invadido, mesmo que por mera curiosidade. Para Rubem Braga escrever é viver em voz alta.



A linguagem escorreita alcança os sentimentos escondidos na alma. Lembro-me do canário da Vó Sinhá, nos tempos de infância no Porto dos Barreiros, que emendava o verbo melódico de Debussy à primeira nota musical de Alexandre. Seu peito estufava de orgulho por dizer a palavra completa. Talvez alguma palavra escrita aqui sirva para iluminar remotas esperanças.
terça-feira, 10 de abril de 2012 | By: Doracino Naves

Tempo Inexorável

Se existe uma coisa que me dá medo é o tempo. Não do tempo em que um dia vai me levar em suas asas para o além. Mas o tempo que corrói os objetos de estimação transformando-os em pó. Os meus sapatos samello, à Marlon Brando, de amarrar, disformes, foram abandonados. As minhas roupas que se gastaram para proteger a minha pele também foram deixadas de lado. Ah, como era gostosa aquela camisa de algodão! Coitada da camisa; virou pano de chão e os sapatos,chutados pelos meus pés, jazem num lixão qualquer.

Eles acompanharam minhas andanças urbanas fiéis ás inquietações de antigas madrugadas. Até aquela calça de pitex inglês, parece que foi feita com fibras de urtiga, foi comida pelas traças. Olha só a besteira que eu fiz: usar tecido europeu no calor seco de Goiânia. Estreei a calça numa matinê do Cine Goiás, na Avenida Anhanguera. De lá até a Vila Nova, a pé, com o sol forte, as fibras do tecido estouravam imitando igual mamona madura.

Irritado, literalmente, pelo espírito fogueteiro daquela calça eu decidi que nunca mais elas vestiriam minhas pernas. Traumatizado depois dessa só usei calças de tecido mais leve, de preferência o brim.

Volto ao tempo! Era disso que eu falava. Ele consumiu também os bancos de madeira que suportaram o peso largado de tanta gente em cima do coitado; ele se entortou todo. Até um cavaquinho, presente do meu pai com o seu primeiro salário de coletor estadual, fugiu com o inexorável tempo. Acho que, desprezado pelos meus olhos, o cavaquinho se rendeu à umidade do fundo de um armário também derretido pelo tempo. Só ficou a forma desses objetos, guardada no porão da alma. Até meus filhos, pequenos, transformados pelo tempo, se fizeram adultos.

Nisso eu ganhei, pois outros pequeninos, os netos, frutificam meus sonhos que se constroem nas linhas invisíveis de emoções incontidas, guardadas no porão da vida. Pois é. Lembro Vinícius de Morais para quem os maiores sentimentos estavam ligados a três acontecimentos: ao nascimento dos filhos; às posses e aos adeuses. Por falar em Vinícius o tempo também o levou a mais de 30 anos. Suas estrofes, eloquentes, guardam o fôlego do espírito do poeta que, simplesmente, amou o amor.

Seus poemas e frases, cujo tempo tem todas as cores, trazem no ritmo das palavras o contorno da criação sublimada pelo verbo.Sua arte, eterna, continuará natural como a fonte que borbulha para depois encontrar o seu leito intencional. Qual é a missão da arte? Penso que é contagiar o espírito igual ao fogo que se propaga no capim seco do cerrado.

O poema da vida revela os sentimentos; superioridade da alma. Mesmo assim o tempo se arvora em devorar objetos e formas. E eu vou junto.