sábado, 27 de outubro de 2012 | By: Doracino Naves

Casinha pequenina



Filmes são sínteses. Assim caminha a humanidade, cujo título em inglês é Giant – gigante – é uma adaptação da obra de Edna Ferber, autora de Palácio de Gelo, que disse certa vez: “ser uma solteirona foi grande como morrer por afogamento - uma sensação muito agradável quando você deixa de lutar”. Uma característica da obra literária de Ferber é sempre destacar um personagem secundário que enfrentou discriminação étnica. Ela acreditava que as pessoas não tão bonitas têm o melhor caráter. Esse filme é um libelo do racismo dos americanos do Texas contra os mexicanos que migraram para os Estados Unidos, na primeira metade do século passado.
 
Dirigido por George Stevens, Assim Caminha a humanidade teve dois roteiristas: Fred Guiol e Ivan Moffat, amigo de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Guiol e Moffat reproduziram muito bem a saga americana que construiu o seu império sustentado, principalmente, pelos trabalhadores africanos e latinos. Mesmo assim, o americano tradicional considera-nos uma raça inferior. A primeira vez que vi esse filme foi no início dos anos sessenta, no Cine Regina, na Vila Nova. O que mais me impressiona no filme é - em primeiríssimo lugar - a beleza divina de Elizabeth Taylor que se preparava para iluminar Cleópatra nas telas do mundo; Rock Hudson, com quase dois metros de altura; a interpretação incomparável de James Dean e o caráter dos personagens mexicanos representados por Sal Mineo.
 
Hoje, passados tantos anos, imagino o motivo que me fez gostar tanto desse filme a ponto de elevá-lo a um dos melhores filmes que já vi, em todos os tempos. Penso que foi, principalmente, pela abordagem antirracial do romance de Edna Ferber. Toda essa questão eu vivia naquela Vila Nova, povoada, inicialmente, por nordestinos e trabalhadores vindos do interior de Minas Gerais. Havia, portanto, um liame entre a ficção das telas e a plangente realidade em que vivíamos.
 
Já que a crônica de hoje fala sobre cinema é bom lembrar dois bons filmes brasileiros desse período: Chamas no Cafezal – de 1954 e Casinha Pequenina - feito em 1963 - um dos filmes mais caros de Mazzaropi em que marca a estreia de Tarcísio Meira no cinema. Certamente que o valor gasto no filme não foi por causa do salário do, então, jovem ator.
 
 
No tumulto das noites de domingo no Cine Regina, onde a fila dobrava quarteirões, eu de cá você de lá entregando o seu ingresso ao porteiro. Não havia esperança de um encontro antes do filme; nem sala de espera havia no cinema da Vila. Só sujeira e pulgas indiscretas a interromper a magia dos filmes; sínteses da histórica caminhada do homem nessa casa pequenina.
 
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DM-Revista - Goiânia, Goiás em 27 de outubro de 2012).
 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
sábado, 20 de outubro de 2012 | By: Doracino Naves

Assim caminha a humanidade

 
Fuço um armário de madeira onde guardo filmes antigos. Revirar objetos guardados é coisa de gente que já está passando da hora. Descubro que os meus filmes preferidos estão gravados em fitas videocassete.
 
- Onde está o nosso videocassete?
 
- Isso nem existe mais. Agora é DVD. Outra coisa: joga fora essas fitas com músicas que o som do seu carro não é toca-fitas; é toca CD. Tem uma pessoa aqui no prédio que transforma esse lixo em coisa atual. Pede para ele fazer isso. Assim você vai entrar na modernidade.
 
Olhei mais uma vez a coleção de filmes. Atentei-me ao tempo que passa inexorável igual às águas do rio que nunca voltam. Para onde foi aquele menino que empinava papagaios? Cadê o adolescente que colecionava gibis. Para onde foi a alegria juvenil de quem se divertia com as trapalhadas de Peninha, personagem que Walt Disney criou para atazanar a vida do Pato Donald. Minha coleção está empoeirada e decadente. Eu também.
 
Paul Auster, escritor americano, disse em A Invenção da Solidão: “Envelhecer é a coisa mais estranha que pode acontecer a um garotinho”. Volto aos filmes. Filmes são sínteses. Na primeira metade do século passado o cinema foi o símbolo do Monte Olimpo. Os atores, deuses... da sétima arte.
 
Pobres filmes esquecidos. Ricas histórias guardadas no armário escuro. Elas precisam, literalmente, de luz para falar. A Sinfonia Pastoral, de André Gide, prêmio Nobel de Literatura de 1947, foi o primeiro a aparecer entre meus dedos: é a história de uma menina cega criada entre pastores de ovelhas. Depois, já moça, recupera a visão. Mas, se depara com a necessidade de conviver com o amor e o ódio dos pais adotivos.
 
Apalpo com carinho a caixa do filme Palmeiras Selvagens, de William Faulkner, feito em que 1949. Eu nasci nesse ano. Alguns anos depois, em 1956, Faulkner disse em uma entrevista que o artista não tem importância; só é importante o que ele cria. Foi ainda mais contundente quanto à literatura: Se Homero, Balzac e Shakespeare ainda vivessem, os editores não precisariam de mais ninguém para escrever. Ele ainda afirma que todos os escritores repetem a mesma coisa.
 
Meu indicador desliza sobre os títulos de alguns clássicos: A dama das Camélias(Dumas); A Revolução dos Bichos (George Orwel); De Salto Alto (Pedro Almodóvar); Fausto (adaptação da obra de Göethe); Germinal (Emile Zola); Hamlet (Shakespeare); O caçador de pipas (Khaled Hosseini); Os Miseráveis e Corcunda de Notre Dame (Victor Hugo); O crime do Padre Amaro(Eça de Queiroz); O nome da rosa(Umberto Eco) com Sean Connery e O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry.
 
Tem outros filmes dentro do armário. Mas, o que eu procuro é Crime e Castigo, filme russo feito em 1969, dirigido por Joseph Sargent. Essa é a melhor adaptação do livro de Dostoiévski. A história se passa em São Petersburgo, na Rússia, por volta de 1830.  Quero ver o filme para compará-lo com a releitura que faço do livro. Aquele armário antigo me mostra outras preciosidades do cinema.
 
Duas Mulheres - estrelado por Sophia Loren - abre um sorriso enigmático. Esse filme, feito em 1960, ambientado durante a Segunda Guerra Mundial, foi dirigido por Vittorio de Sica.Sophia me faz lembrar o poeta Mario Quintana que, bem humorado, contou numa das 130 historinhas adaptadas por Juarez Fonseca, que caiu da cama porque sonhara com a fogosa atriz italiana.
 
No canto esquerdo do armário – chamando a minha atenção para revê-lo - está o filme Assim caminha a humanidade, com Rock Hudson, Elizabeth Taylor e James Dean.
 
(Publicado no Jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV(www.raízestv.net). Escreve aos sábado no DMRevista.
sábado, 13 de outubro de 2012 | By: Doracino Naves

Ponto Azul



 No mercado da Vila Nova tinha o bar Ponto Azul ao lado uma barbearia e cadeiras de engraxates espalhadas pela calçada. Fui um destes. Era o jeito de ganhar uns trocados para o filme de domingo no cinema. O dinheiro era pouco porque só engraxávamos aos sábados e domingos. Nos dias de semana era aula no grupo escolar Murilo Braga. Em frente ao mercado havia a feira livre com casebres de madeiras que serviam a negócios estranhos: casa de mulheres; tiro ao alvo; jogos de argola; mulher barbada; homem que, no meio da fumaça virava macaco e balançava com força as grades que uma cela improvisada. Meus olhos se voltavam para a putaria que funcionava no meio dessa bagunça. Alguém me disse: olha com os olhos e lambe com a testa. Nunca entendi essa expressão popular.
                   
                        Nas madrugadas de domingo a Praça da Vila Nova acordava entre gritos e burburinhos do despertar dos feirantes e suas carroças. Nenhum cavalo relinchava; cumpria a sina em silêncio; de cabeça baixa. Havia uma multidão com os olhos cansados das ruas de terra que abriam os braços ao infinito. A Goiânia dessa época era pura e sem limites. O mundo de sonhos da cidade em construção transbordava a sua volta. Os fios da rede de energia elétrica - colocados sobre postes de aroeira retorcida - pareciam teias de aranha a prender quem chegava à nova capital disposto a uma vida próspera. A magia do cinema nos levava a lugares distantes. O filme o Velho e o Mar mostrou a crueza das águas e a solidão do homem perdido no seu drama.  
                  
                        O mar e o simbolismo de um barco saindo do porto é a figura perfeita da liberdade. Com essa imagem é possível viajar além do que vemos. Feliz o pioneiro que rompeu os limites do seu mundo em busca de outras possibilidades. Um retrato da solidão é a pessoa que passa parte do seu tempo numa casa sem olhar para o céu. As cidades grandes são obstáculos que impedem a alma de ver mais longe. A maioria, presa pelo que construiu na terra, anda pela mesma estrada igual a uma lagarta que desconhece que o seu destino lhe dará asas de borboleta. Na condição humana só o despertar da fé e a esperança são capazes de romper o limite das crenças e convicções pessoais. Talvez a maior aventura da terra seja viajar para dentro de nós.
                 
                         Ainda hoje acredito na mágica que transformou aquele homem em um macaco na confusa feira da Vila Nova. Acredito em muita coisa que amanhã, certamente, vou descrer. Mudo de opinião sobre muitos aspectos do viver. Essas descobertas movimentam meu ser. Mas a imagem do homem na luta egoísta me sobressalta. Só a decodificação da vida cristã me acalma até sentir um enlevo a me conduzir ao encontro com outra pessoa. Penso que o princípio dual do ser humano o faz, ao mesmo tempo, único e plural; é assim quando sai de dentro de si para caminhar com o outro. É nessa condição que se vê nas coisas e no próximo. Eu tenho necessidade de sentir para escrever. O coração ferve o sangue nas veias.
                  
                        Se tiver sumo, escrevo. Essa crônica sai como se uma personagem ditasse cada palavra. O fim, às vezes, surpreende. Escrevo lentamente, à conta-gotas. Dizem que um bom escritor escreve rápido.
                  
                        Ernest Hemingway compôs em quarenta dias um dos seus grandes romances, O sol também se levanta. Isso aconteceu numa viagem com a esposa Hadley durante suas férias pela Espanha e França. Ele foi tão danado para escrever que, num só dia, fez três primorosos contos: Os matadores, Dez índios e Hoje é sexta-feira. Outro grande escritor - este é brasileiro nascido em Iporá, Goiás - Edival Lourenço, escreveu Pela Alvorada dos Nirvanas numa noite.
                       Sou um catador de imagens.                     
                       Fecho os olhos. Vejo um ponto azul boiando no espaço escuro da mente; transformo-me num minúsculo e pálido ponto azul a vagar no infinito espaço sideral.
                      Só então as palavras chegam à mente.
                                           
                Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raízesjornalismocultural, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012 | By: Doracino Naves

Dança de salão

Lembro que encostado numa banca de raspadinha - gelo raspado por uma espécie de enxó - com adição de groselha - um homem olhava decidido para as bandas da Liga dos Amigos da Vila Nova. Mais tarde me contaram que a raspadinha vermelha lembraria a ele o Campari. De forma que o abstêmio tomava ‘raspadinha’ de groselha ao invés da bebida alcóolica. Menos mal. A verdade é que, embora exagerando na substituição do álcool por essência escarlate, Hermegildo estava pronto para a matinê dançante no salão da Liga.
           
Vestira seu infalível terno marrom; gravata borboleta azul com uma flor vermelha na lapela; cabelo partido ao meio à Amigo da Onça. Com o peito estofado se mostrava, orgulhoso, às damas. Mas, não percebi o interesse de nenhuma mulher que passava por ele. Decerto elas não imaginavam que se tratava de um cavalheiro dançarino. Pensei isso, sem ao menos saber se ele era bom de dança. Imaginei que essa seria a realidade. Ora bolas, então, por qual razão alguém se vestiria dessa forma sob o sol causticante de outubro; com o olhar firme como se estivesse às vésperas de uma estreia.
             
Alguém me disse que Hermegildo era analfabeto, mas um grande dançarino. O fato de ser analfabeto não fizera nenhuma diferença sobre o que eu pensava dele. Passei a admirá-lo porquê dançava bem e eu não. Duro como uma estaca eu tentava me fazer ágil nos movimentos da dança e, nada. Mas, curioso, aprendi a dançar bolero - somente bolero - nas matinês dançantes de domingo nas casas daquela Vila Nova de sonhos. Resolvi chegar mais perto do dançador. Perguntei-lhe qual o segredo para dançar bem. Primeira regra: ser um perfeito cavalheiro respeitando as donzelas e seus acompanhantes. Segunda: fazer o corpo seguir os mágicos movimentos da música. Dentro de um salão de dança, disse-me, meus pés se movimentam ao ritmo das notas musicais.
              
Desde esse dia aprendi que o conhecimento intelectual não é o bastante; o coração deve ser tocado pela graça de Deus. Vi aquele homem assim: agraciado pela arte da dança e da música. Perfeitas criações divinas. A ponto de fazer de Orfeu um exímio tocador de lira a reanimar os argonautas na célebre viagem de Jasão. Até as brigas cessavam quando Orfeu tocava. Também rendo graças a Davi, o suave cantor de Israel, que tocava o coração de Deus com sua harpa. Hermegildo, o dançarino, confessou que, se pudesse, viveria para sempre dentro de um salão de dança.
              
Tenho a alegria de olhar para trás e perceber o romantismo medieval das danças de salão. Ando, a toda hora, com minhas lembranças. Meus pensamentos são beliscados pelas impressões da vida. Hoje, o som do bolero me pede para recomeçar. Recomeço na necessária desconstrução das emoções. A orquestra celestial – com o Maestro a oriente de um imenso salão - me espera com músicas suaves.

(Crônica publicada no jornal Diário da Manhã -DM-Revista - Goiânia - Goiás em  06 de outubro de 2012).
    
               Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.