domingo, 27 de novembro de 2011 | By: Doracino Naves

Ponta do Durex

Hoje tudo está chato. Minha vontade é estar no meio de um buritizal ouvindo o canto dos pássaros-pretos.  Mas, não, estou no meio de uma selva de concreto, no alto do Setor Bueno. Pois, é. Às cinco da manhã um maluco toca a buzina estridente pedindo para o guarda abrir o portão do prédio. Não sei se ele quer entrar ou sair. A pressa pode ser por doença ou algo mais urgente. Ou, simplesmente, um bêbado chegando de madrugada. Mas, e daí? O que eu tenho com isso? Ele nem sabe que a sua buzina me acordou de um pesadelo. Aí vou percebendo que eu sou o chato. O mundo continua o de sempre, intolerante e cruel. E eu vou nesse embalo da modernidade: a chatice das repetições.         

Pensar nessas coisas incomoda mais do que um celular tocando no cinema. Na madrugada, em frente à janela, vejo uma montanha de prédios. Não há campos a minha volta. Ah, que saudades de estender a vista pelo sertão de veredas. Corro para a outra janela, a da sala. Desse lado as construções são baixas. Vejo as luzes coalhar o chão úmido com as primeiras chuvas. Reparo ruas, reparo casas e minhas vistas míopes perscrutam o movimento da cidade que começa a se despertar.

Percebo que sou um caipira preso na liberdade de Goiânia. Tenho vontade dar uns cascudos na cabeça de quem plantou prédios, um lado do outro, no Setor Bueno. Penso que o pior lugar de Goiânia para se morar é aqui. Idiota de quem o inventou cheio de arranhas-céus de narizes arrebitados. Porque não planejou prédios baixos para que os seus moradores pudessem ver o sol nascer. Até a lua nesse lugar só aparece acima dos prédios. A impressão é a de que a lua do Setor Bueno é diferente de outros lugares; já surge no zênite.

Aqui o meu olhar não acha o horizonte do cerrado da minha infância. Os olhares no Setor Bueno são verticais, acima da cabeça. Vou me acostumando a andar sempre de cabeça levantada. Talvez essa seja uma razão da minha chatice. A culpa, então, é do Setor Bueno? Sei lá. Só sei que não devo olhar as pessoas do alto. O certo é baixar o queixo e ver o próximo ao nível do olhar.

Abro os olhos para ver o mundo, penso e trago de volta as imagens das belezas da paisagem de Goiânia de outros tempos. O risco é a gente esquecer-se de suas belezas naturais. Sim, porque quando a gente fecha os olhos diante do sol esquece que ele existe. O sol, a lua, as árvores, os rios, a terra e tudo que nela existe não buscam fórmulas complicadas para existirem. São simples porque nunca erram. Ao contrário de nós.

Deus fez tudo com uma precisão impressionante. E a lei da compensação dos nossos dias e neuras é quando vemos o mundo com um olhar nítido de uma flor do campo.  Há novas árvores e novas flores sobre a terra. Tudo é tão real que a maior indagação é saber quando tudo começou. Onde está a ponta do durex?

Para curar chatice o melhor é uma rede cearense azul, da cor do céu, que descansa na sacada de um apartamento projetado por um maníaco construtor de caixas de pombos. Ele deve saber como construir casinhas em cima de árvores. Deito na rede de alma baiana por uns instantes com o prazer do descanso do corpo de um cronista modesto num país de poucos leitores. Na rua quase deserta ouço gargalhadas, talvez vindas de festas, saltos batendo no asfalto duro de um dia que termina para uns e começa nos olhos do crepúsculo. São ruídos de quem nem sabe que eu existo.
terça-feira, 8 de novembro de 2011 | By: Doracino Naves

Boi engarrafado

Minhas raízes gritam dos cafundós das minhas lembranças. O silêncio das pedras de Porto dos Barreiros – minha Atlântida perdida no borbulhar das águas do Rio Paranaíba – guardam segredos dos passantes que, em tempos sem estradas, atravessaram a divisa.  Porto dos Barreiros foi a passagem das caravanas vindas do Rio Janeiro e oeste mineiro com destino a Goiás e Mato Grosso. O Rio Paranaíba se enchia de ar para a travessia das balsas que flutuavam sobre o seu leito, conduzindo, incólumes, os sonhos para a outra margem. Uberaba, no começo do século passado, já era a capital do gado Zebu.

 
Oh, Moisés, se o mar vermelho se abriu para a passagem hebreia rumo à Canaã, o Paranaíba embalou os sonhos do brasileiro rumo ao oeste do país. No mar pereceram os egípcios que desejaram frear os sonhos de uma multidão; no rio os indecisos, perdidos no meio das águas, igual boi engarrafado, não ousaram viver numa terra de sonhada felicidade. Os corajosos atravessaram o rio. Do outro lado fincaram as colunas de uma nova civilização. Conduziram suas famílias para o então novo eldorado brasileiro, Goiás, que inaugurara uma nova capital: Goiânia.

E Goiânia se tornou um anjo sem asas, leve e delicado a proteger os seus moradores com a magia que interveio nos destinos dos chegantes. E pensar que essa Goiânia metrópole começou num lugar ermo, escondida da maioria dos olhos dos humanos dispersos na terra, então com menos de três bilhões de almas. Em 2011 somos sete bilhões de terráqueos, a maioria de olhos puxados, muitos para o lado de Goiás, onde se plantando tudo dá. Nesse universo, Goiânia é apenas um ponto no mapa da humanidade, porém, já floresce aqui uma nova cultura.  Quem chega agora, se não é gente boa, com o tempo se torna bom. Isso aconteceu com muitos que tropeçaram na raiz do pequizeiro. Igual a mim contam a sua história, indelével crônica da vida.
Diz a cultura popular que um homem para morrer feliz deve escrever um livro, plantar uma árvore e ter filhos. Árvores, já plantei. Filhos, tenho quatro. Livro...ainda não tive coragem para cometer esse livrocídio. Coitado do leitor. Outro dia em Pirenópolis, onde me escondo da gritaria do “sertanejo universitário”, um leitor de minhas crônicas me perguntou quando eu iria lançar um livro de crônica. Desconversei.

Num dia qualquer, talvez num futuro distante, os meus amigos em sentimentos de homenagem resolvam publicar, post-mortem, os meus escritos. Se, em vida, aparecer alguma crônica em livros é sinal da minha insanidade. Por isso adio esse dia com medo de ficar louco. Sou um pai tardio em minhas tarefas de escrever, o que faço semanalmente no DM Revista. Sim, o meu fazer literário é um filho que nasceu tardiamente. O padrinho é o Batista Custódio, meu compadre. Sou chique, né? Esse filho eterno grita no silêncio do concreto da cidade, retirando do cristal da alma um pouco de luz.
Essa inacabável obra - a de escrever - deve me acompanhar por toda a vida; por isso será eterna na minha mania de melhorar e aperfeiçoar as minhas histórias. Sou um pai tardio e aprendiz de escritor. Nem sei se vou aprender com tempo, pois escrever bem é um dom. No amadurecer da escrita quero ser igual ao menino que chupa manga e limpa a boca nas costas das mãos; natural na sintonia do verbo que se expressa à memória e dos dedos que materializa o pensamento.

O pensamento bom é música aos ouvidos atentos. Qual Orfeu, na lendária viagem do Argos, que tirava de sua lira a melodia para animar os heróis exaustos que se moviam ao ritmo das notas musicais.
Minhas lembranças gravadas no tempo mergulham nas águas do Rio Paranaíba, aos acordes de uma bela canção. E gritam sacudindo os alicerces do meu mundo.
quinta-feira, 3 de novembro de 2011 | By: Doracino Naves

Sementes de Bucha

Nem o frio da madrugada na traseira de um caminhão sem lona diminuíra minha vontade em conhecer uma cidade maior do que Porto dos Barreiros ou Palmelo. Eu pensava que fosse encontrar em Goiânia aquela gente que vi, ainda menino, nos filmes americanos do cinema improvisado de Palmelo. Foi assim que os meus sonhos chegaram à Vila Nova, também misturados com as sementes de bucha colhidas às pressas antes da mudança; depois plantadas num lote na nova terra. Goiânia ainda era uma cidade nova, mas tinha quatro cinemas no centro, além do Cine Regina, na Vila Nova: O Cine Goiás, o Cine Santa Maria, o Cine-Teatro Goiânia e o Casablanca.

De tardezinha, na secura de setembro, uma nuvem vermelha cobria o céu. Era a poeira dos bairros sem asfalto e das casas em construção. A maioria dos operários viera do nordeste do país. O que mais me agradou não foi o tamanho da cidade nem os seus cinemas; foi a cultura nordestina, alegre e destrambelhada. O uso e o costume dessa gente guerreira e, principalmente, a comunidade dos baianos, então predominante no bairro, me pareceram bem diferentes da minha mineirice.

Na Vila Nova aprendi a conviver com a diferença cultural. De um lado a alegria e a solidariedade dos baianos. Do outro, o meu jeito mineiro; quieto e calado a observar o movimento de uma cidade diferente. Pois é, Manoel Bandeira, Goiânia é a minha Pasárgada. Mesmo distante de Persépolis continua fundamental para a minha compreensão do mundo: “Não digais tudo quanto sabeis, porque aquele que diz tudo quanto sabe, muitas vezes dirá o que não sabe. Não façais tudo quanto podeis, porque aquele que faz tudo quanto pode, muitas vezes fará o que não deve. Não acrediteis em tudo quanto ouvis, porque aquele que acredita em tudo quanto ouve, muitas vezes acreditará no que não ouve. Não gasteis tudo quanto tendes, porque aquele que gasta tudo quanto tem, muitas vezes gastará o que não tem. Não julgueis tudo quanto vedes, porque aquele que julga tudo quanto vê, muitas vezes julgará o que não viu”.

Aqui aprendi a gostar dos nordestinos da Vila Nova, principalmente dos que me ensinaram a ver o mundo pelo lado bom. O professor e poeta Ubiratan Rosa, que entrava na sala de aula declamando Castro Alves me fez gostar de poesia. O professor João Natal, que era vereador e me levou a conhecer Iris Resende, então jovem candidato a prefeito. Ah, saudades do professor João Alberto de Almeida, diretor do Colégio.  Aprendi com essa gente bacana e, mais tarde redescobri com Beltrold Brecht, que "a melhor de todas as artes é a arte de viver". São exemplos de algumas pessoas  que venceram as adversidades e se tornaram pessoas importantes, a exemplo da escritora Leda Selma e Aidenor Aires, advogado e poeta, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás; baianos que honram Goiânia com seus versos. 

Goiânia vive uma diversidade cultural interessante, mas a sua identidade cultural ainda está em construção. Afinal, é uma cidade nova, apesar dos seus 78 anos.  Inaugurada por Pedro Ludovico com o Batismo Cultural, foi redesenhada por Iris Rezende e Nion Albernaz. Hoje é administrada pelo goianiense Paulo Garcia, prefeito culto e trabalhador.

Essa pluralidade a faz diferente de outras cidades brasileiras. E a sua posição geográfica, no centro geográfico do país, ainda favorece a vinda de pessoas de outros lugares que perambulam pelas ruas e avenidas de Goiânia.        

No balanço das sementes tocando os casulos vazios da bucha sai um som de chocalho. Não poetizo os sons; sinto-me uma bucha seca para entendê-los como são. Qualquer dia o editor deste caderno percebe o som arrastado da minha crônica e me manda plantar semente em outro quintal...