sexta-feira, 15 de maio de 2015 | By: Clara Dawn

Simão manqueba

         

Aos dezesseis descobrimos coisas maravilhosas. Alguém pode ter uma experiência de vida inusitada antes dessa idade. Mas, só aos dezesseis anos isso se eterniza, sublima ou passa à memória. Foi assim com Simão, o Sem Caráter, personagem que já me deu muito trabalho.  Na última vitória do Anápolis sobre o meu Vila Nova, ele me aparece no Serra Dourada para dizer que o Tigrão iria perder o jogo. Batata! 3 a 1 para o Galo da Comarca.

       Quando fez dezesseis, Simão Sem Caráter foi à Zona. Na antiga Avenida Bahia, em Campinas, iniciara a sua vida sexual com uma prostituta do baixo meretrício de Goiânia. Ele dizia que a Zona da elite ficava na Rua P-16. Preferia puta pobre por ser mais fogosa. E o preço era menor. As putas da Bahia não pediam Cuba Libre que custava dez cruzeiros; Caipirinha, sim, custava só um. Jamais pagaria Cuba Libre a uma puta.

        Com dezesseis viu a ditadura militar assumir o governo do Brasil. Nem comunismo, nem capitalista; soviéticos ou americanos, farinha do mesmo saco. Em uma dessas visitas ao prostíbulo viu um par de muletas encostadas no muro de entrada da casa de Dilurdes. Jogou-as no quintal baldio e entrou certo de não haver testemunha. Lá dentro, olhou em volta para saber quem poderia ser o dono; permaneceria na sala até descobrir. Nisso chegou Pedro Montanha, um policial civil forte e violento . Muita gente tinha medo das reações intempestivas de Montanha. Com o pé direito engessado se apoiava em Dilurdes.

        “Eis o dono das muletas.” Tremeu de medo só em pensar que alguém poderia tê-lo visto no malfeito.

         Ficou quieto alisando as pernas de uma mulher com cintura de tanajura. Logo ouviu a explosão irada de Pedro Montanha.

        - Qual foi o filho da mãe que pegou minhas muletas?!!

        Diz a cultura popular que o bom cabrito não berra. Simão ficou no seu canto, com a eterna cara de peixe morto; jeito manqueba de ver o mundo; sem coragem para assumir nada; indeciso, em cima do muro. Deixava a peteca cair sem remorso. Um alvoroço dos infernos se instalou na putaria. Gente para todos os lados e nada de encontrar as muletas. Até o cafetão Jair saiu à rua para procurar. Ninguém as encontrou, embora todos procurassem até em lugares antes procurados. O medo era visível.

         Montanha espumava a boca de ódio; as veias do pescoço dilatavam a cada acesso da fúria.  
     
        -Vou matar o engraçadinho que fez isso.

        Simão Sem Caráter, um monte de merda inqualificável, permanecia inerte. Agora com a mão atrevida na cinturinha de pilão. Mesmo na desordem a casa das damas continuava a funcionar. Percebendo que Simão não ia render nada, a acompanhante preferiu encontrar um homem com dinheiro para gastar.

          Outra mulher saiu do quarto; terminara o seu serviço.

         - Por que essa gritaria?

         Dilurdes explicou o acontecido.

        - Ninguém sabe onde foram parar as muletas de Pedro Montanha.
        - Eu sei onde elas estão.

       Chamou Jair.

        - Vamos ali. Eu vi um homem jogá-las no quintal ao lado.

       Montanha esperou a mulher devolver as muletas.

        - Quem fez isso?

        Simão se moveu com indiferença.  A mulher respondeu.

        - Não sei. Estava escuro; vi apenas o vulto de um homem. Não sei dizer mais nada.

        Pedro Montanha saiu inconformado. Antes de ir embora ameaçou:

        -Ainda vou descobrir quem foi o safado. Aí então...

        Simão coçou a cabeça.

        Viu a mulher que encontrara as muletas chegar mais perto.

         -Paga um cuba, meu bem?
       
(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista em maio de 2015)

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