segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014 | By: Doracino Naves

A sós com o meu riso

Sorrio ao sentir o milagre de andar livre pelas ruas de Goiânia, erguer os olhos sobre os prédios, olhar para o alto, pisar a calçada do Bosque dos Buritis, sentir o cheiro da vereda do Parque Flamboyant, ou falar com as pessoas no Biscoito Pereira da Rua 55.  É um milagre especial a chance de rever lugares comuns. A saudade é o milagre da memória. Tudo o que acontece no mundo é  milagre, desde o instante de desabroche de uma flor ao nascimento de um bebê ou o surgir de uma estrela no eterno firmamento. Também é um milagre a poesia dita à amada ou quando vai com ela para a cama. A vida, por si, é um milagre transcendental; surge em todas as manhãs e vai até o dia seguinte, mesmo que a morte apareça antes da aurora. A finitude é o milagre do renascer. 

Nada escapa à lei do possível. Tudo pode acontecer nesse mundo comandado pelo milagre; o alvoroço das abelhas na tarefa de esculpir o favo de mel; o pôr-de-sol  que prenuncia estrelas distantes, quietas e luminosas. Ou o iluminado risco crescente pendurado no céu com aviso de lua cheia. Essas e tantas outras coisas, mesmo na abjeta individualidade, estão ligadas entre si. Esse é o milagre da conectividade do cosmo. Cada árvore ou o corcunda mover do inseto que busca abrigo com medo do passarinho é um milagre imbricado em outros mais ou menos importantes.

A inspiração da arte na alma do homem é, para mim, o mais invejando milagre; o escritor ao sublimar a palavra faz milagres. Graça tem o olhar do pintor que cria imagens coloridas. Mozart, sob os influxos do som harmonioso das galáxias, decodificou o milagre em suas melodias.  Isso é igual ao ator que apreende o sentimento de quem escreve e o retransmite na interpretação do drama ou da comédia. Dessa mesma forma vejo a cultura popular de cada povo se expressar no milagre da tradição ou a verve do poeta que acredita que a sua dor é a maior de todas. Percebo, quando vejo o mar,  que o movimento das ondas se transformam em milagres de idas e vindas; fluxo e refluxo das marés. Ou a curiosa intuição dos peixes que se escondem dos ventos ou do frio nas águas mais profundas. Mesmo a ciência e a tecnologia moderna, tão senhoras do seu nariz, são manifestos de milagres.

Ainda mais, a descoberta de partículas menores do que o átomo ou de planetas gigantes revelam o milagre do conhecimento ou o descobrir do fantástico. A matemática é o milagre da precisão e a fé dá a certeza da resposta milagrosa. O amor ou o ódio, paradoxais, são prodígios da idiossincrasia dos hormônios. Lá no alto, no espaço sideral, a física liberta a nave flutuante. Naquela igreja apinhada, a prece voa com asas de origami; no estádio Serra Dourada, o torcedor, cheio de esperança, espera o milagre do gol; no ônibus ou na aeronave lotado milhares de pessoas têm encontros arranjados pelo destino. Cada choque da matéria ou o encontro do espírito revela o milagre da lei da probabilidade. 

A beleza de um urso panda ou a feiura repulsiva de uma barata cascuda é um milagre da natureza; tudo que se vê ou alcança é um milagre sem fim. Existe coisa mais sobrenatural do que o milagre?  

(Doracino Naves, jornalista: diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultura, PUC TV, sábado,13h30. Crônica publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 08 de fevereiro de 2014). 






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