terça-feira, 15 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Flagrante

Manhã de chuva intensa no centro de Goiânia. Motoqueiros se escondem da chuva, pedestres esperam embaixo das marquises até o temporal passar. Dezenas de carros aguardam o sinal verde. O ônibus-sardinha também para. Todos param na esquina da Avenida Goiás com a Rua 2. Um vendedor de frutas borrifa água nas maçãs vermelhas, goiabas verdes, uvas roxas, pêssegos amarelos e mangas cor-de-rosa. As frutas sentem cócegas no corpo. Sobram gotículas que escorrem lembrando o orvalho de inverno no capim meloso do campo limpo. 
      

                 Chego inteiro à esquina, com o espírito cheio de arestas. Mas mesmo na chuva, minha alma é clara. Parece, na minha míope visão, o espírito eterno de Renoir quando pintou Le Ponte des Arts, em Paris. Ele, genial artista, retratou o porto do Rio Sena tomado de luz e pedestres na praia. Eu, escritor neófito, talvez aprendiz abaixo de zero, digito meus limites nesta crônica com as cores da minha percepção.
     

               Ainda sinto o cheiro do café servido, minutos antes, na varanda da casa da irmã Marlene. Misturado com prosa sobre assuntos amenos, com direito às caçoadas do sobrinho Daílton, que acordou de bom humor. Na boca ainda tem o gosto do pão de queijo quentinho servido com um copo de suco de laranja. Nisso entra uma vizinha com um prato de pamonhas. Marlene retribui com um prato de pão-de-queijo. O café, a prosa animada e o calor da fraternidade da vizinha é um conjunto melhor do que o café-da-manhã em hotel chique.
       

              Um copo de suco de caixinha não é igual a um copo de fruta fresca, colhida no quintal. Um frango alimentado com hormônio de crescimento, servido com nome francês, nem se compara ao frango com quiabo e macarrão feitos na roça. Aliás, o  macarrão industrializado não tem o mesmo sabor do macarrão caseiro da mamãe; nascida mineira, bisneta de italianos. Luz da minha alma errante. Para ela sou o homem mais bonito do mundo e sem defeitos. Isso, claro, quando meus irmãos Sinésio e Everton não estão por perto. Aí ela diz que todos são perfeitos.
        

               Olho em frente, ao alto, o sinal vermelho chameja ao vento que sopra nas lembranças paradas na esquina. O vermelho dança sob a chuva forte, no  vai e vem das ondas do tempo. Sou exato nessa esquina; passo por aqui todos os dias às sete da manhã. Busca uma rotina amena para encarar o mundo duro.  “Pontual como um grito de carnaval” recordando a poesia de Gilberto Mendonça Teles. Rubem Braga diz que acordar mais cedo faz o dia maior.
         

             Pisco os olhos, à esquerda vejo um homem com o guarda-chuva prata leva nos braços um ramalhete de margaridas coloridas. Serpenteia decidido entre os carros, talvez vá ao encontro da amada. As águas correntes no asfalto cedem aos passos do homem; calçado com galochas de plástico. Na esquina parada, onde só a chuva se movimenta, todos olham o homem passar com o semblante luminoso. Penso que vai com um pedido de casamento na garganta. Ou o motivo das flores seria outro? Melhor pensar que navega ao encontro da namorada.  
          

           Segue pela calçada. Olho-o através dos vidros embaçados até perdê-lo de vista. A esquina ficou vazia sem a presença dele. A chuva foi embora, no lombo do vento que voa para o lado do Bosque dos Buritis. A câmera lenta do tempo é desligada. Os motoqueiros aceleraram suas motos desvairadas. Alguns pedestres, mais afoitos, enfrentam os últimos pingos  da chuva fria. 
         
          

          O sinal abre passagem. O ônibus se antecipa aos carros. Sacoleja ao ritmo da dança de lobo guará. Os carros se movem.
          Não sei se vão ou vêm. Saio da esquina pela metade.
          Assovio uma música antiga nessa manhã chuvosa.

        Doracino Naves, jornalista: diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Culturalwww.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.

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