segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Pirilampos de Madeira

O trem, uma maria-fumaça que vinha de Araguari sacolejava e soltava fumaça pelas ventas. Nesta viagem havia lugares vazios na primeira classe, com bancos estofados de couro; sobrava gente na segunda classe de bancos duros de ipê. Amanhece, pequena cidade de Minas, ficara para trás. De longe, avistava-se a ponte sobre o rio Paranaíba; do outro lado, Anhanguera, a primeira cidade em Goiás. O sol, cor de pequi, caía do céu no fim da tarde. As árvores retorcidas do cerrado eram iluminadas pelo sol poente; espectros em movimento. A paisagem amarelada dava sinais de que estava com  sede. O vagão avançava sobre o barranco da serra, engolindo terra, dormentes e pedras; os trilhos faziam o trem chicotear noutra direção. Parecia uma sucuri esgueirando-se pelo sertão de veredas.

Fungando e gemendo avançou sobre a pinguela entre Goiás e Minas. Fungava e gemia sem parar. Mais rápido:
Fungaegeme! fungaegeme, fungaegeme.
Fiiuííí!
Tac...talac...tac..... fazia o trem ao passar pelas emendas da ferrovia. Dentro do vagão, cada um ajeitava-se no seu canto. Uma mulher jovem, com menos de 30 anos, rodeada por sete filhos abriu uma lata de bolachas caseiras feitas de polvilho. Deu uma bolacha para cada filho; quatro meninos e duas meninas; a caçula mamava no peito. Eu era o mais velho dos filhos de Dona Laudelina.
 
Escureceu rapidamente. Uma senhora, vestido de chita rosa, ofereceu farofa. Nenhum lugar do mundo era mais solidário do que a maria-fumaça da minha infância. Ali vicejava calor humano. A noite trouxe frio. Minha mãe estendeu um cobertor sobre nós, deitados no corredor do vagão. Um velho, fumando um cigarro de palha, estendeu outro cobertor. As faíscas da fuligem, liberadas pelo vapor do trem, formavam gotículas de luzes. Efêmeros pirilampos de madeira.
Um homem taciturno, terno de casimira cinza e chapéu de feltro, apressou-se em fechar a janela. As lágrimas das madeiras em brasa voavam pelo espaço querendo furar o terno fino de casemira. Seus sonhos viajavam com as brasinhas para além das janelas de vidro. As faíscas viravam cinzas. Outras eram acesas pela fornalha da locomotiva à lenha. 
 
O chefe-de-trem, um mineiro forte, negro com bigode de arame, farda azul igual à de um militar; quepe com cordinhas amarelas na aba e um apito amarrado com cordões brancos trançados, preso no bolso superior do casaco. Na mão direita um alicate com uma redonda haste de metal nas pontas. Ele soprava o apito com os pulmões para se anunciar; a artéria do pescoço estufava.
 
- Bilhete. Bilheeete!
 
O bilhete da passagem, feito de papelão era picotado e devolvido ao passageiro. No fim da viagem tinha três furos. Quem pegava o trem numa estação intermediária tinha menos furo no final do percurso. Em trajeto menor não tinha nenhum furo; mas o bilhete era exigido na descida. A população fazia festa quando o trem parava. Homens de ternos, mulheres com vestidos coloridos, meninos encapetados postavam-se nas plataformas.
 
Depois de muito sacudir nas tripas da sucuri de ferro, adormeci. Tive sobressaltos durante a viagem. O frio daquela madrugada se agarrou nas beiradas do alvorecer temendo morrer ao calor do sol. Acordo com o apito estrepitoso do chefe-do-trem que tinha pose de general:
 
- Goiânia! Estamos chegando à estação de Goiânia!
 
Taac...talaaac...taaac... soava as rodas-de-ferro, agora  mais lentas, sobre os  trilhos. O trem parou. Uma multidão de vendedores invadiu os vagões. O gerente de hotel entrou nos vagões oferecendo hospedagem barata.
 
- Mãe, eu vou descer primeiro e ficar no pé da escada, contando os meninos para ninguém se perder.
 
Um olhar de alegria, lento, acompanhou a chegada da família. Meu pai, Zequinha Naves, nos esperava na estação. O ar de Goiânia estava puro e azul;  as curvas das ruas rasgavam o cerrado. Maria-fumaça, cansada da viagem, espreitou os passos da esperança.

          Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

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