quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Pedras na urna

Com o barulho da ficha descendo na garganta da urna o motorista abre a porta do ônibus. Os mais espertos jogam pedrinhas como se fosse o bilhete de passagem. Poucas linhas de ônibus na Goiânia dos anos 60. Todas iam do centro até o ponto final dos bairros; Campinas, Vila Nova, Setor Pedro Ludovico, Vila Coimbra, Setor Universitário, Fama. As catracas eletrônicas de hoje são mais eficientes. Mas, a superlotação tirou o prazer da viagem de ônibus daqueles anos.

Não havia furto e sobre assédio sexual nem se ouvia falar. Nos finais de semana, na pacata Goiânia de 32 anos, os ônibus levavam ao cinema. Domingo era dia de seriado no Cine Santa Maria, com filmes no formato das atuais novelas de televisão. Naquele tempo existia em Goiânia um cinema para cada grupo de dez mil pessoas.

Só no centro tinha cinco: o Cine Goiás, Santa Maria, Casablanca e Cine Teatro Goiânia. Em Campinas, Cine Helena, Eldorado, Campinas e Cine Avenida; na Vila Nova, o Cine Regina; na Fama, Cine Rex. Dia de cinema a gente vestia a melhor roupa. Para entrar no Cine Teatro Goiânia e Casablanca, à noite, só de terno; sem ele, nada feito. Quem não tinha paletó arrumava outro jeito para entrar.

Como era isso? Alguém de terno entrava e, escondido do porteiro, passava o paletó pra quem estava de fora. Assim, muitos entravam com um único paletó. Teve um dia em que o time do Las Vegas, uma equipe amadora de futebol da Vila Nova, entrou no Cine Casablanca só com o paletó do Nondas, meia-direita do time. O filme era o clássico Sansão e Dalila, com Victor Mature e Heddy Lamarr, dirigido por Cecil B. DeMille.

Até torcida tinha nas salas de cinema. Só que diferente dos estádios de futebol onde a torcida é de dois; nos filmes ninguém torcia pelo jacaré. Todos torciam pelo mocinho na ilusão de que fosse possível outro final. A plateia, alucinada, aplaudia e gritava o nome do herói.

Nos filmes de índios, então, a chegada da tropa americana a cavalo soprando cornetas era saudada por uma gritaria geral, unísona. Nos filmes de Tarzan, quando o herói da selva batia no jacaré, o chão tremia com o bate-pé da torcida.
- Êêê!   Esse Tarzan é demais!

O cinema americano encantou milhões de pessoas. O cinema nacional também tem o seu encanto.

Nas chanchadas brasileiras o foco é o carnaval com burlesca crítica social e política. Em outros filmes da época a sátira foi o cinema americano. Nem Sansão nem Dalila, com Oscarito e Eliana Macedo é uma paródia. O cinema brasileiro tem filmes mais engajados como Macunaíma, estrelado por Grande Otelo e Paulo José, um clássico do cinema brasileiro. As revistas em quadrinhos completam a magia do cinema.

Aos domingos as calçadas vizinhas aos cinemas se transformavam em feira de gibi usado. Os mais cobiçados: Roy Rogers, Batman, Fantasma, Zorro, Billy the Kid, Superman, Tio Patinhas, Peninha, Pato Donald e Mickey Mouse.

Os gibis foram leitura obrigatória para os cinéfilos dos anos 60. Boa parte dos estudantes dessa época aperfeiçoou o gosto pela leitura lendo gibis que, mesmo depois de ensebados ainda tinham valor para trocar por outro usado. Até com um dinheirinho de volta se fosse raro.

O bom ônibus, o bom cinema; dormir no cinema. Uma ficha desce macia pela garganta. Deus abre a porta. Desço a escada olhando para o céu. Estendo os braços para o alto. Não jogo pedras na boca da urna.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

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