segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Carroceria de caminhão

Um caminhão de carroceria aberta parou na rodoviária de Palmelo. Pulei, rápido, na carroceria e me escondi no meio dos jogadores de futebol que se preparavam para viajar. Menino ainda queria ver o jogo do Palmelo contra o Pires do Rio Futebol Clube marcado para as 10 de horas de um domingo calorento. A viagem, de seis quilômetros, talvez durasse uma hora na estrada de pedra e poeira da época. Fiquei sentado nas tábuas ensebadas do caminhão do Sátiro, zagueiro troncudo do time da cidade. Cada vez mais eu me encolhia para que o meu pai não me visse ali. Fui eleito mascote do time na suada partida contra o time de Santa Cruz. Mas eu sabia que nada disso iria amolecer o coração do meu pai. Vi, passando pelas pernas dos jogadores e as frestas da carroceria a cabeça levantada do meu pai me procurando. Enfiei-me embaixo do saco de roupas do time. O Agostinho me dedurou. Desci com a orelha pendurada nos dedos do meu pai. Voltei triste e amedrontado para casa. Não me lembro do resultado daquele jogo.

Em compensação ouvi, na Rádio Globo, a final da Copa de 58 em que o Brasil foi campeão. Com direito a show de Pelé e Garrinha na voz de José Geraldo de Almeida. O menino da roça ouviu, pela primeira vez, que futebol é arte. Sublimando Pelé como o artífice que transmutou o couro da bola em ouro da fortuna dos jogadores descendentes do rei. Depois de Pelé, o único, talvez só Zico, Maradona, Tostão, Garrincha e Romário. Na Copa de 2010 vi alguns jogos. Só a Argentina, até agora, me agradou. Não gosto de futebol de resultados. Desculpem aqueles que querem ganhar mesmo com um futebol medíocre. Penso que não há valor que substitua a arte. Na atual seleção brasileira só o Robinho, como diz a Leda Selma, é capaz de fazer poesia com os pés.

E os pés tortos que erram o companheiro e o rumo gol são indignos até para amassar o barro da olaria. Mudo o canal da televisão com a mesma certeza quando escolho o livro que vou ler; percebendo a alma do artista na plenitude da criação. A mídia em torno de best-sellers e das músicas de momento é uma ignomínia. Mas no futebol as câmeras mostram quem é bom. E esse time da Argentina tem o Messi, herdeiro do talento dos grandes jogadores do passado. Com lampejos dos deuses do futebol. Dia desses, ao lado do campo de treinos da seleção brasileira, um bando de crianças descalças brincavam de bola num campo de terra batida.

Permaneci sentado nas tábuas da minha cadeira de balanço. Fechei os olhos e me entreguei às lembranças do futebol puro; feito com arte. O futebol de resultados é uma impertinência da arte. E viaja na carroceria levando na cara a poeira do tempo; o futebol-arte vai à boléia.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (
www.raizestv.net)

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