segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Um Grito Na Mata do Lago das Rosas

-Mãiê, eu já sei fazer conta ‘de cabeça’.
A mãe, surpresa, perguntou:

- O que é isso menino. Contar cabeça?

- Não, mãe, eu tô dizendo que aprendi a tabuada.

Eles moravam num ranchinho de pau-a-pique na beira do rio Meia Ponte,  perto de onde hoje é o Goiânia 2. Analfabeta, não entendeu bem aquela conversa. Enquanto isso, uma acauã cantou por cima do casebre.

Ela matutou: 

“Cabeça... tabuada...”. Pensou que o seu filho ficara maluco. Apressada e aos gritos, chamou a sua vizinha:

-Dona Maria, vem cá, correndo.

Ela chegou rápido.

- O que é, Chica. O que aconteceu pra você gritar desse jeito.

- É esse menino, Sinhá Maria. Ele tá dizendo que sabe contar cabeça. Será que ele foi ao cemitério contar cabeças de defuntos

- Uuuhh!, só de pensar dá arrepio!

Dona Maria imaginou que fosse alguma coisa da escola. Mas, sem uma resposta convincente, resolveu perguntar direto ao menino. E fez isso calmamente, com doçura nas palavras.

- Explica isso direitinho, filho. Fala devagarzinho pra gente entender.

A mãe queria mais detalhes:

- Isso mesmo, explica tudo. E é agora!
  
O menino, falou em tom professoral:

- Mãe, Dona Maria, eu disse que o professor Domingos me ensinou a fazer as contas de somar, de diminuir, de multiplicar e de dividir. Eu já sei fazer isso de memória; sem papel e lápis. Querem ver: 3 vezes 3 são 9; tira 5 ficam 4.

-Vou dar um exemplo melhor: se eu tenho seis bananas e divido entre nós três, dá duas pra cada um. Tá vendo, mãe, é disso que eu tô falando.

A mãe ficou ainda mais assustada.

- Nossa! Esse menino está possuído. Dona Maria, ele não tá bem da bola. O João, meu marido, contava as vacas do patrão. Assim mesmo, ele se enrolava todo. Por isso ele punha nome nelas pra conferir.

- Dona Maria, faz favor, benze esse menino! Benze ele logo! Na certa o Domingos, aquele professor baiano que usa palmatória, pôs macumba no garoto.

- Cruz credo!

A vizinha, benzedeira, quebra um ramo de arruda e começa a benzedura. Depois de falar palavras estranhas, termina o ritual dizendo:

-Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Todos, uníssonos:

- Amém!

- Pronto, Chica, seu filho está bento.
A mãe agradeceu do seu modo:

- Deus lhe pague inhá Maria. Deus lhe pague.

Logo que o pai chegou a história foi repetida pra ele.

Ele ficou ainda mais indignado com a história do Joãozinho. Aquilo era uma afronta à sua ignorância. Num misto de curiosidade e ciúme do saber do filho, mas também sem entender patavina, achou aquilo muito esquisito.

A família viera da roça, lá pras bandas do Rio Turvo, havia só seis meses. Onde já se viu uma criança, que há poucos dias atrás borrava nas calças, ser melhor do que ele.

Nunca!

Não ia admitir alguém saber mais do que ele na casa. Ora essa, ele era o provedor da casa. Então, deveria saber mais do que todos.                             

O professor foi chamado para se explicar.  Ele explicou que o Joãozinho tinha um cérebro privilegiado. E que aquilo, embora raro, não era coisa do outro mundo. Acenou com um consolo:

- Quem sabe, no futuro, ele pode ajudar vocês a vencer a miséria.

-É, tá certo. Sendo assim...

Os pais do Joãozinho, mesmo desconfiados, aceitaram o dom do menino e a vida seguiu como Deus manda.

O tempo passou. Perto do Lago das Rosas, na Vila Coimbra funcionava a Celg, no prédio onde hoje é a Secretaria da Educação, tinha um bar.

Ali, um jovem desempregado assombrava os curiosos fazendo complicadas operações matemáticas. Um dos curiosos perguntou: qual o resultado de 8.5l9,47 dividido por 457, 14?

Joãozinho acertou prontamente. Com uma calculadora a conta foi conferida.

“Certa a resposta”, como diria o apresentador J. Silvestre. Sucediam perguntas e, sempre, a resposta era exata. Todos ficavam embaraçados com a destreza do raciocínio privilegiado do jovem.

Ele logo ele se tornou uma atração do lugar.

Num dia nublado de novembro, prenúncio de tragédia, Joãozinho atravessou a Avenida Anhanguera distraído. Uma carreta carregada de cabos de aço desbeiçava-se no asfalto do meio dia. De repente o ranger de freios e um baque; nenhum grito se ouviu. No meio das rodas do caminhão o corpo do Joãozinho se dividiu em dezenas de pedaços. 

Uma acauã soltou um grito que fez eco na mata do Lago das Rosas. Depois,  o silêncio do menino que sabia contar.

          Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

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