segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Água Morna da Madrugada

Pisei firme na calçada do Parque Areião numa madrugada  de outono. Uma folha seca range sob o meu pé esquerdo; o mais próximo do coração. No romper do dia ainda calado, sem o roncar dos motores e buzinas dos carros, uma luz continua acesa na entrada da clínica de estética dos dentes; sorrio para abrir a sorte no novo dia. Um vento suave adormece o grilo notívago cansado da seresta da noite passada; estrela  sonora que repousa embaixo do capim orvalhado. À noite sua voz estará descansada e afinada para o show diário dos grilos. Nenhum canto de galo ecoa ao redor do Parque. Acho que o grilo se adapta melhor às cidades; o galo é timidamente roceiro, prefere os poleiros solitários na noite escura. Um grilo sozinho ressoa o seu canto como uma orquestra tocando em todas as direções.

No lado leste um lago se forma com o córrego nascente. Lavo o rosto na água morna da madrugada; respingos na cara de uma paixão sem sono. Acelero o passo.  Alguns caminhantes ficam para trás, outros passam trotando, talvez com o pensamento na lua. Todos têm sinais das cavalgaduras do viver no lombo. Boné à cabeça, agasalhos ou roupas leves, os caminhantes calçam tênis de marcas famosas. Levam penduricalhos tecnológicos na cintura com fios nos ouvidos igual zumbis sem olhos. Uns derramam na goela o líquido da garrafa; cospem de lado o catarro da nicotina. Outros engolem a saliva e caminham sem olhar para os lados.  O próximo é fantasma de sombras; caminhantes indignos de um olhar suave.

O olhar pode ser curioso ou fatal. A expressão reveladora do olhar de uma mulher é cheio de significado; símbolo a espera de interpretação. Da Vinci captou o enigma do olhar feminino em sua Monalisa. O olhar aceita adjetivos: olhar maneiro, carinhoso, rude, bisbilhoteiro. Olhar sensual e hostil. Ou olhar de secar pimenteira e matar passarinho na gaiola. Todos os olhares revelam o interior da alma.

Mas, felizmente ou não, o olhar obedece ao comando do coração. Minha caminhada de quatro voltas durou quase duas horas; nesta altura o sol já invadira a pista do Areião. Caminhar por tanto tempo cansa o corpo e prepara para as emoções do dia-a-dia.  Na última volta vejo, embaixo da mangueira, dentro do Parque, uma família começando um piquenique. Gente de todas as idades; de mamando a caducando. Um casal de mais idade que parece ser o pai ou avô da turma observa o movimento da família. Lençol estendido; por cima se vê quitadas e comida em vasilhas térmicas; garrafas de café e sucos. Pelo visto a turma vai ficar por ali o dia todo.

Na sombra da mangueira as mulheres oferecem biscoitos de goma e bolinhos de fubá. Círculos de pessoas, como átomos em volta do núcleo, formam grupos. Pessoas da mesma idade e ideias formam rodas embaixo da mangueira. Uma mulher, talvez a filha mais velha do casal de velhinhos, conversa com as pessoas.
Pisei firme na manhã do meu sonho. Uma folha seca estala dentro do coração.

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