quarta-feira, 19 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Carta de náufrago

 Agora que o mormaço de setembro zumbe nos ouvidos, misturando a linguagem da seca e do calor brabo, o olhar se volta para o alto em busca das nuvens que o vento levou para outros céus.  O amarelo do sol, sugado pelos ipês floridos, tinge esse cenário de quarenta graus. Sou o centro das minhas coisas; não o meio do mundo, mas o ponto dentro do círculo das emoções entrincheiradas nas frestas da alma. Há sempre uma fina cortina a trespassar o passado. As vibrações delirantes do tempo seco me faz imaginar coisas: uma bailarina dança indiferente à corte do cisne.
 
Nas ondas flamejantes do sol cáustico o balé renascentista serpenteia dentro da minha realidade. A espera da chuva para o mês que vem enche de esperança o lavrador da terra. Debruçado à margem seca ele vê o Meia Ponte perdido no seu leito esponjoso. Os barrancos secos clamam por chuva. Muito se perdeu nesse rio de águas inconstantes e lambuzadas: juras de amor; cartas jogadas em seu leito como se fossem mensagens de náufrago; mentiras e verdades faladas nas horas incertas; os discursos idealistas de Haroldo Gurgel, Alfredo Nasser, Pedro Ludovico e as inflamadas falações no palanque das Diretas Já; os gritos de gol do Tigre da Vila ainda ecoam nos remansos do rio.                  
 
Os fantasmas ressuscitados nos peixes beliscam o lixo flutuante que, certamente, no seu destino de dejeto, há de encontrar um porto antes do oceano. Talvez acompanhado pelos habitantes das trevas e do caos: ratos, baratas e aranhas.
            
 Muito se perdeu nas curvas deste rio. Os quatro ventos, incontroláveis, sopram as águas de quem mora em Goiânia. E os ventos, nesse sentido, simbolizam o redemoinho da vida que corre inexorável como as águas do meu rio. A cidade cresce estendendo os seus braços em todas as direções. Ainda vai crescer muito. Tem um poema de Gilberto Mendonça Teles que diz assim: “Certamente os braços continuarão crescendo. O tato se tornará mais sensível. E os dentes crescerão tanto que a boca ficará sempre aberta, um túnel”.
         
 Já que falei de Gilberto, aqui vai outro poema, bem ao gosto de quem se dedica a escrever: “Eu caminho seguro entre palavras e páginas desertas. Nas retinas: sonhos de coisas claras e a lição de outras coisas que invento para o só testemunho de minha construção imaginária de pedra sobre pedra e cimento e silêncio”.
            
Pois é. Melhor ficar calado diante da eloquência dos versos de Mendonça Teles.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás em  15 de setembro de 2012)
       
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraizes.net). Escreve aos sábado no DMRevista.




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