segunda-feira, 3 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Agulha de cego

                 Um cego e o seu indispensável guia esgueiram-se por entre os carros parados num sinal da Alameda das Rosas. O da frente vai com a mão entendida; bate no chão a bengala puída. O cego põe a mão no ombro esquerdo do outro e o segue confiante. Assim, vão de carro em carro; o cego, de expressão serena, recolhe as ofertas e as deposita num embornal encardido pendurado no seu pescoço. O guia, resignado com aquela missão, escolhe o carro a abordar. Solidários, um põe a sua esperança no outro e dessa forma enfrentam o sol forte do meio dia.
             
Do lado direito da rua o motorista de uma reluzente camionete, parada na lerdeza da tarde que se inicia, abre o vidro elétrico e olha a dupla com desdém. Lembrei-me de Lúji, personagem de Dostoiévski, que, na sua verve egoísta, disse que se rasgasse o seu casaco e ofertasse a sua metade ao próximo, ficariam, os dois, seminus. Dissera, no alto de seu egoismo, que o ser humano precisa triunfar da quimera e do devaneio para amar a si mesmo por inteiro. Ou seja, amar a si mesmo é jamais dividir o que tem com o outro; ambos poderiam ficar sem nada.  Eu, do time dos bobos de galocha - mas se me deixar influenciar pelo personagem de Crime e Castigo,  oferto as moedas sobre o console. Na verdade, confesso, queria ver a expressão deles ao receber uma quantia pequena. Percebi que eles, impassíveis no seu universo de dores, ficaram agradecidos com as migalhas. Afinal, o mundo é um hospício cheio de personagens com cicatrizes como se fossem tatuadas pela dor.
             
Os personagens, na maioria, são pessoas comuns retiradas do seu sossego pela mente inquieta do escritor. A recompensa - e o desafio - é mostrar que qualquer pessoa pode compartilhar a sua história com um grande público. Somos um turbilhão de vidas interiores ardendo em paixões furiosas de um modo ou de outro. Talvez sejamos como as folhas da lixeira agrupadas no ápice dos ramos. A lixeira, uma das árvores mais disseminadas do cerrado, cujas folhas também são usadas para arear panela de roceiro, tanífera, tem gosto de remédio. Embora de aparência áspera e simples, na cultura popular dos garimpeiros, a lixeira indica os veios de ouro no caminho das gerais. Assim, as cicatrizes do sofrer, podem levar a um coração purificado.
             
Essa crônica surge com uma história ainda presa na alma; um espírito escondido no texto. Paul Auster, ficcionista americano, autor de Cidade de Vidro, diz que “o passado é sempre apresentado como outra encarnação do presente”.
         
Observo a cena de olho na reação das pessoas e na aparência sofrida da dupla de mendicantes. Sou, enquanto humano e falho, parte da dupla de pedintes e também faço parte da vida dos que estão dentro dos carros parados; prontos a engatar a primeira marcha e sair atropelando sonhos. Saio devagar com o cheiro da gasolina queimada cuspindo fuligens no ar.
       
 Meus ouvidos se enchem na imaginação do som da folha de uma lixeira, guiada pelo vento, raspando na telha de barro quente pelo sol com os acordes da música eterna do salmista.
       
O guia de cego sobe à calçada e me olha. O outro percebe-me em seu espírito.


Doracino Naves, jornalista;diretor e apresentador do programa Raízes Joranalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraizes.net). Escreva aos sábados no jornal Diário da Manhã - DMRevista.
                

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