segunda-feira, 27 de agosto de 2012 | By: Doracino Naves

Uma porteira no caminho



                                                                                                                                   
A Rogério Lucas. Saúde, amigo!

Vida dura foi a da minha infância. Muito dura. O mundo fez-se luz nos meus olhos, imprimindo, indelével, as cores do interior brasileiro na minha alma. O cenário onde nasci estava pronto com um pedaço do planeta redivivo no interior de Minas Gerais. Porto dos Barreiros, à beira do Rio Paranaíba, surgiu emoldurado pela vegetação da mata Atlântica e do Cerrado mineiro. A natureza o inventou semeando milhões de pequenas flores; plantadas no campo e nas margens gordas do rio. Minha aldeia tinha poucas casas; todas cercadas por fazendas. A vida rural e a urbana se confundiam. E a lida diária não dava folga a ninguém.
             
Em razão da penúria da primeira profissão de lavrador do meu pai, mal tínhamos o suficiente para viver. Mesmo na roça, ele mantinha as aparências de família tradicional. Vô Amâncio morreu quando meu pai era muito novo, tendo que assumir, desde cedo, os cuidados com a mãe, Arlinda Naves. Viúva, ela enfrentou muitas dificuldades para sobreviver até se casar pela segunda vez com o Vô Gabriel. Com isso meu pai resolveu tocar a sua vida. Propôs ser arrendatário na fazenda do Tio Quinzote. Depois, se casou com a minha mãe, Laudelina, que foi ajudá-lo cozinhando para os peões, no eito dos trabalhos. A família Zequinha Naves cresceu rápido. Vivíamos uma pobreza dignificada.
                 
Nossa casa, na entrada da vila, fora alçada nos contrapés da aroeira plainada à eixó; paredes em enxaimel revestidas de barro; o teto coberto com folhas de jerivá trançadas. A avó materna, Floriscena, cuidava da casa enquanto eles trabalhavam. A vida se tornava suportável com a ajuda dos vizinhos.
                   
Araguari, sede do município, distava algumas léguas entre a serra contornada e o mato aberto a machado para construir a estrada rústica. Do lado outro lado da porteira morava a família João de Souza com uma penca de filhos - meninos e meninas - estranhamente nus. Nunca entendi a razão daqueles meninos sempre pelados; a pele tatuada pela sujeira. Fediam. Das duas, uma: desmazelo da mãe ou costume. Costume mais besta, nunca vi!
                
No meio do caminho havia uma porteira. Através dela entravam os viajores; também por ela saiam os meus sonhos. Como seria o mundo além da porteira da minha rua? Um dia - digo que foi na primavera por causa de som manhoso de um carro de boi rangendo sob o sol forte - soou a buzina rouca de um Fordinho 29. Um som indecifrável incomodou os meus ouvidos. Curioso, corri até a porteira. Abri-a com os olhos grudados no automóvel. O motorista com chapéu de feltro, terno e gravata do começo do século passado, jogou uma moeda.
                    
Peguei-a sem saber o significado daquele gesto largo. Ele me disse: - É sua! Mordia-a para ver se era de verdade. Senti um gosto acre. Minha mãe, que a tudo observava, guardou-a num improvisado cofre. Passei a ficar atento à estrada para encher o cofrinho de moedas. Logo estava cheio. Numa noite, entre sussurros à luz de lamparina, ouvi meu pai dizendo que deveríamos nos mudar no sentido de buscar uma vida melhor. Imaginei uma cidade cheia de fordinhos roucos. Pensei: - Algo interessante deve acontecer na vida das pessoas numa cidade grande.
                   
Mas, precisávamos atravessar aquela porteira. Atravessamo-la. Foi a primeira das muitas que destramelo até hoje. Parece sina; quando abro uma porteira lá vem outra a me desafiar: 
                         
Tem uma fila de porteiras no meu caminho.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 25 de agosto de 2012)

                  Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural(www.programaraízes.net), na Fonte TV. Escreve aos sábados no DMRevista.
                

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