sábado, 8 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Céu risonho




 Não há nenhuma nuvem acima dos prédios do centro de Goiânia. O céu está limpo nessa madrugada. É mês de setembro, cinco horas da manhã. O barulho das turbinas do avião subindo invade o meu sono. Depois que ele passa  ouço o canto demorado de um galo. Custo a acreditar nos meus ouvidos porque não mais existem galos por aqui que a falta de quintais não deixa. Esfrego os olhos para acordar. Na sacada, espremido na pequenez do lugar, entre o varal de roupas e a parede baixa, aparece Simão, o Sem Caráter. Seu corpo etéreo balança com o vento chiando entre as peças de roupas e o lençol branco estendido no espectro da madrugada. Dá um calafrio, rápido talvez provocado pelo ar fresco que sopra a pedir mais zelo desse escriba a Simão.
         
De vez em quando ele volta da sua recôndita morada para me seduzir a escrever coisas do seu agrado. Pergunta-me se escutei o canto do galo. Faço-me de desentendido. Ele recomeça a sua conversa mole. Simão é sempre assim: antes de eu responder ele emenda as suas pataquadas. Comprara o galo numa loja de aves da Avenida Castelo Branco, em Campinas. O nome do galo é Conrado. Jura que é um galo cantor; canta dois minutos sem parar. É grande, bonito; todo branco,  bico fino, afiadíssimo. E para me agradar diz que a cauda dele é toda vermelha, da cor do Vila Nova.
           
Havia um tom de ironia em suas palavras; imagino que se refere à posição rabeira do meu time fora de série. Simão garante que comprara o galo também para alertar aos moradores do Centro que o dia deveria ser de vigília quanto às hipocrisias e injustiças. E completou esperançoso: - Ele vai fazer nossos vizinhos se lembrarem da vida rural. O galo canta alto para avisar às galinhas que o chefe está vivo e no comando do terreiro. Simão se tornara uma galófilo irritante.
          
Percebendo minha impaciência a ouvir essa história de galo musical, Simão desapareceu entre os prédios da Rua 20. Um cheiro suave de rosas foi se diluindo na fluídica manhã.           
           
Comemoro a presença de Simão quando começo a escrever. Acho que a entrada dos personagens numa criação artística deve ser celebrada discreta e humildemente, pois é o começo de alguma coisa. O agradecimento deve ser guardado para a saída, quando o texto termina.
             
A crônica poética me ajuda a pensar na realidade desvinculada do presente irônico dos tempos de hoje. Uma foto, por exemplo, mostra uma inocência irônica, passiva e ilusória. A ficção permite que os personagens se materializem diante de nós como nossos contemporâneos; sem as amarras do texto macarrônico.  
             
Desperto dessa passagem com a garganta seca provocada pela baixa umidade. O canto do galo ecoou mais uma vez. Soa como se fosse o toque de trombeta sobre a cidade adormecida.  Vigiai, ora, pois! Conheço pouco da grande corrente do misticismo judaico, mas essa conversa de galo está chegando ao fim sem nuvem, mas com o céu risonho de um azul translúcido.
            
                
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraízes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

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