sábado, 8 de outubro de 2011 | By: Doracino Naves

Cordas do coração

O artista já nasce artista. É uma afirmação, mas bem que poderia ser uma interrogação. O talento é espontâneo ou podemos despertá-lo do seu sono letárgico ao longo da existência? A dúvida vem da percepção de que, mesmo com muito esforço, raros se destacam no fazer artístico.

Nessa viagem pelos labirintos da criação artística e literária é absolutamente impossível racionalizar a abissal diferença entre a obra de Machado de Assis e a da maioria dos escritores brasileiros; Mozart e a sua genial ópera A Flauta Mágica; Shakespeare e sua obra eterna. A impressão é que Deus põe a mão na cabeça do escolhido e o autoriza a viajar pelo universo da criação artística.

Eterna é a pintura de Leonardo da Vinci; arrebatadora a escultura de Michelangelo. Há centena de outros grandes artistas que se fazem portadores da cultura do seu povo.  O Livro dos Salmos, onde a metade é atribuída a Davi, revela o primor da poesia hebraica sem rima; mas pela repetição paralela clareia o pensamento do autor. O Livro de Ezequiel, autor que é considerado por alguns críticos como esquizofrênico, é um clássico, com figuras alegóricas impressionantes.
Será que o conhecimento intelectual é suficiente para atingir as cordas mais profundas do coração? Aí a gente já pode começar ver o caminho que separa a arte do conhecimento intelectual. Um artigo científico não impacta a alma da mesma forma que uma crônica de Rubem Braga. Leda Selma, doce cronista do DM, faz a gente parecer maior e mais importante do que somos. Há nestes exemplos uma sutil diferença entre a inspiração e a transpiração.

Num sentido mais literal podemos ver o efeito da arte sobre as emoções até no futebol. A correria dos jogadores em mais de 90 minutos do último jogo Santos e Flamengo foi apagada por lances de pura arte dos artistas Ronaldinho Gaúcho e Neymar. Este toque mágico da inspiração faz a diferença entre a arte e o suor. Então, arte é só a que toca as nossas emoções? Nem sempre. Nossas emoções são tão volúveis!

Mas elas descobrem canais que ligam o nosso espírito ao alto. Isso também depende dos nossos valores estéticos. Seja qual for o processo da criação artística, uma certeza: os artistas são seres especiais enviados para iluminar a existência terrena. Lembro-me do palhaço Carequinha quando esteve em Goiânia, no começo dos anos 60, numa única apresentação no antigo Cine-Teatro Goiânia. Eu era engraxate na Avenida Goiás, mas conhecia suas músicas e os seus filmes.

Nesta época Carequinha era o palhaço mais famoso do Brasil, animando programas na TV, no Rádio e em filmes que rodavam o Brasil. Um palhaço muito bacana. Uma de suas músicas diz assim: “O bom menino não faz pipi na cama/O bom menino respeita os mais velhos...” E por aí vai. Fui ao Teatro Goiânia pensando só em vê-lo chegar pela entrada lateral. Nem pensei em assistir o seu show.

Ele chegou com a sua turma pouco antes da apresentação; inclusive o palhaço Meio-Quilo um anão que participava das suas palhaçadas. O teatro estava lotado de crianças e os seus pais.  Como não podia pagar a entrada fiquei por ali, junto com os outros engraxates, na porta do Teatro pensando num jeito de entrar. Porém, antes de começar o show, Carequinha autorizou a nossa entrada sem pagar o ingresso. Nem acreditei que veria, ao vivo, o palhaço Carequinha.

Foi a primeira vez que entrei no Cine-Teatro Goiânia. Vi o show, com mais de outros dez engraxates, sentados na caixa de engraxar e num lugar privilegiado: na primeira fila entre o palco e as primeiras cadeiras. Carequinha já foi embora deste mundo, mas continua palhaço no imaginário de milhões de brasileiros.

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