quinta-feira, 14 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Mão-de-onze

Estranho o truco jogado naquela casa; calado e no escuro. O silêncio  trazia fantasmas para morar na escuridão. Os jogadores continuavam calados, com palavras e gestos medidos. Bem ao contrário da natureza barulhenta e alegre do truco. No centro da sala uma mesa pequena, quadrada, com quatro cadeiras ocupadas por jogadores tensos. Era possível ouvir a respiração dos jogadores enquanto manuseavam as cartas, três em cada mão.

Voltou a luz e, com ela, um pouco de entusiasmo. Mas o clima ruim continuava no ar. As paredes enfumaçadas e picumãs pendurados no teto escondiam um segredo. O jogo de truco, por tradição, é feito sem apostas. Mas, neste jogo havia um acordo sinistro.

- É meu o baralho. Dou das cartas!

Cada um examina as suas:

- Eu sou o pé. Então, você que é mão, joga  a sua carta!

Cai um ás de espada na mesa, depois um valete de ouro, um três de paus e, no pé, uma espadilha fecha a primeira mão.

-Primeira feita, Agostinha na garupa.

Começa a segunda rodada. ‘O mão’ retorna a primeira carta e um três de copas roda a mesa até fechar a segunda mão sem truco. A seguir a última rodada da queda. Estava jogo-a- jogo e onze a onze; uma das duplas chegaria aos doze pontos. Pela regra ninguém podia trucar na mão-de-onze. Nessa altura a sorte seria de quem tivesse as maiores cartas ou uma boa psicologia do jogo.


 Antes de embaralhar os jogadores se levantaram para esticar as pernas. Isoladas, as duas duplas de jogadores tratavam da estratégia final. Depois, sentaram-se.  No truco os parceiros ficam de frente; os adversários, um  à esquerda e o outro à direita. Um deles falou:

 - O mundo é chato. Todos os dias é a mesma coisa pra mim. Acordo de madrugada, levanto, bebo café, dou umas voltas, almoço, janto e vou dormir. Nada há de novo. Eu sei que existe gente que acha o contrário. Mas eles encontram motivos para pensar assim, eu não.

- Pois é. Eu também sou desse jeito. Tento não ter inveja de ninguém. Mas não consigo evitar a inveja dos que têm o que fazer. Acordar, trabalhar, ir ao cinema, ao estádio, pescar, enfim, essas coisas que tomam o tempo e levam-nos mais  mansos para a hora do juízo final. Porque dessa ninguém escapa.

Houve um silêncio entre os quatro. Entrou um ar úmido e limpo. Mas parecia que respiravam um ar que não era deles.

- O mundo está cheio de bondade. Mas, ás vezes as nossas preocupações vem nos visitar em momentos de desânimo. É como o nordestino que tem orgulho da sua terra, porém, não gosta de receber visitas no verão, quando tudo está seco.

- É... os três tem razões em pensar assim. Mas, vou lhes confessar uma coisa: estou com medo. Não quero ir agora. Concordamos com a  roleta-russa. Mas, a gente poderia rever os termos da aposta.  

Num canto da sala tinha um revólver com duas balas no tambor. Uma inesperada brisa gelada entrou pela janela, fez tremer os jogadores, e foi expulsa por uma luz sobrenatural que invadiu a sala e aqueceu o ambiente. Um deles quis resistir á proposta. Outro, ligeiro,  retirou as balas da arma e o escondeu da tentação. Todos concordaram com um sorriso aliviado. Novas cartas foram distribuídas.                

 Agora, sim, o truco parecia jogo de truco. Um dos jogadores subiu na mesa:

-Truco, papudo!

Outro se levantou e, aos berros, retrucou:

- Toma seis, ladrão dos meus tentos!

 Não mais importava quem ganharia a mão-de-onze. A luz traz ânimo para tirar os fantasmas da solidão que mora no escuro da  alma do homem.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural na Fonte TV (www.raizestv.net)

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