quinta-feira, 14 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Janela dos óculos

Na semana passada eu parei a minha crônica no meio da história de Anita, mocinha de 18 anos, casada com o quarentão Luiz da TV. A jovem entregara-se ao casamento com alegria e inocência. Recebia em troca segurança e, sobretudo, muita veneração. Como eu ia dizendo na crônica anterior, tudo parecia perfeito no casarão da Rua 206, na Vila Nova. Até Luiz receber um telegrama de São Paulo com notícias da morte de Geraldo, compadre e amigo de biscates na Praça da Sé.  Quando veio para Goiânia seu amigo era pai solteiro de um menino de cinco anos. Outros seis se passaram até a morte do compadre. Lembrou-se de um compromisso feito com Geraldo de que, como padrinho, cuidaria do menino se alguma tragédia acontecesse com ele.

Como era um homem de palavra cumpriria a promessa. Foi falar com Anita que consentiu. Uma semana depois Edgar, acompanhado por um guia, chegava de trem a Estação de Goiânia. Lá estava o casal esperando. Luiz pagou o homem o que combinaram e ainda deu-lhe o suficiente para o pouso. Juntos, Luiz, Anita e Edgar embarcaram numa perua DKW Vemaguete rumo ao casarão da Vila Nova.  

Anita se dedicou, quase maternal, ao pré-adolescente de 11 anos. Ela acompanhava de perto os estudos e as tarefas do Colégio Santo Agostinho, no Bairro Popular. Lá surgiu o interesse dele em ser padre. Algum tempo depois partiu para um seminário no interior de Minas Gerais. Três anos depois desistiu da ideia e retornou à casa dos pais adotivos. Já não era um garoto, mas um belo adolescente com uma boa educação adquirida no seminário. Até falava um pouco de latim e francês.


Anita olhava com admiração o jovem. Logo percebeu que o interesse foi se tornando um prazer indescritível. Sentia a sua ausência; até mais que a do marido. Achou, a princípio, que era instinto maternal. Aos poucos um novo sentimento chegou puro e inalterável. Só podia ser amor. Lembrou das palavras do seu pai: “quando se tem a cabeça no lugar tontura nenhuma há de incomodar”. Mesmo assim, Anita descobriu que, pela primeira vez, amava sinceramente. Talvez para outra mulher isso fosse o fim do casamento. Mas, esta descoberta não a incomodou;  nada mudaria o rumo da sua vida.


Pensando assim redobrou os cuidados com o marido. Sem descuidar de Edgar. Era uma paixão devotada, porém, séria e casta. A Vila Nova dos anos 60 foi alegre e festeira. Nessa época comecei a enxergar pela janela dos óculos. Havia as matinês dançantes de domingo; sessões de cinema no Cine Regina; Bailes na Liga dos Amigos. Os três eram presentes na vida social da Vila Nova. Longe, no Lago das Rosas, o banho nas nascentes frias do Capim Puba.


Na semana passada, ao abrir a primeira parte desta crônica dizia ser um mero espectador da alma goianiense. Apanho, como num campo de cereal, espigas  maduras de grãos. São histórias colhidas aqui e acolá. Deixo, a propósito, para o final da minha crônica para contar o fim triste de Edgar. Ele morreu afogado no Lago das Rosas. Logo depois o local foi, para sempre,  interditado para o banho. Anita escreveu num canto do seu diário: "Por que chorar? Encho a minha taça com amargura. Fez-se uma claridade dolorosa".

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raaizestv.net

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