quinta-feira, 14 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Sal na moleira

As ruas da Vila Nova formavam torrentes de água enlameada. Nem a 5ª Avenida tinha asfalto. E olha que era a única linha de ônibus. Ou melhor, jardineiras pequenas e de teto baixo. As pessoas mais altas tinham de baixar a cabeça em reverência ao motorista-chefe da jardineira. Melhor ainda que naquela época  a altura dos brasileiros era menor do que hoje em dia. 

Em 1962, havia na Vila Nova uma praça redonda e estreita bordejada por filas de rosas e plantas ornamentais. Nas laterais, pequenas quaresmeiras faziam sombras nas manhãs de sol. Ao redor da praça, hoje chamada Tamanduá, uma série de casas simples pintadas com diversas cores, predominando a azul celeste. Na esquina da Rua 214,  o armazém do Seu Severino se distinguia do resto das casas do bairro. O prédio tinha marquise larga com a frente desenhada com cimento fino. Seu Severino era um nordestino calado e trabalhador. Abaixo da praça, descendo a 6ª Avenida morava o Juvenal, colega do Grupo Escolar Murilo Braga.

 
Pois bem, no início de abril, pela manhã, caiu uma chuva de granizo cobrindo com um branco lençol o calçamento da praça. Eram seis horas quando eu me dirigia ao meu primeiro emprego, no Moinho Goiás. Aos doze anos trabalhava como empacotador de farinha de trigo. Escondí debaixo da marquise com minha bicicleta Philips, presente do meu pai. Esperei passar o temporal. As flores vermelhas, agitadas pelo vento gelado, batiam nas outras perturbando apenas o silencio que reinava na Vila Nova naquela hora. Alguns raios de luz vindos do interior da venda escapavam pela fresta da porta.
 
Pensamentos esparsos me acompanhavam durante a espera. Num deles me lembrei do que me dissera um morador a respeito do Seu Severino, dono do armazém e pai da Gracinha.
  
-Não mexe com a filha do Severino. Homem calado, muito cuidado! Gente de pouca fala não deixa perceber suas intenções. São mais previsíveis do que os que se derramam em ameaças e dão aviso do que pretendem fazer.

 
Alarme falso. Jamais soube de um ato de valentia do Seu Severino. Depois pensei  na figura do Botinha, meu chefe da sessão de empacotamento de farinha, que deveria estar nervoso pelo meu atraso. Sabendo como ele se comportava nessa ocasiões resolvi enfrentar os últimos pingos da chuva que lavou a poeira dos galhos das árvores. Com as duas mãos no guidom empurrei a bicicleta para dar velocidade e pulei no selim com se fosse um cavalo. E pedalei firme pelas ruas esburacadas até chegar ao trabalho. Meu salário da semana vinha em dinheiro. Sem desconto porque eu não tinha carteira assinada. Com esse dinheiro fazia a farra dos meus irmãos mais novos. Dava bem para o sorvete e a raspadinha gelada na feira do domingo.

 
Raspadinha era uma barra de gelo raspada com uma espécie de enxó e misturada com essência de groselha, abacaxi ou limão. Uma delícia que deixava geladinha a barriga da gente. Também pensei: hoje é sábado. Dia de vai-e-vem na Pracinha. E de pipoca no carrinho do Seu Manoel. Talvez ela estivesse na praça, simples com seu vestido rodado, linda e tranquila. Quem sabe a Gracinha olha pra mim. Assim trabalhei  naquele dia.
  
Hoje não sou mais gente nova. Todos os dias Deus põe sal na minha moleira. Um chapéu na cabeça encanecida me convém para me guardar do sereno. Ou talvez uma cadeira de balanço para sossegar os meus pensamentos que se afogam nas torrentes de águas passadas.
 
Ando devagar.  Acho que vou andar por outros cantos da cidade.
 
Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

0 comentários:

Postar um comentário