quinta-feira, 14 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Debrum Azul


- A mãe pediu pro senhor mandar um litro leite e dois quilos de arroz. Quando meu pai chegar da viagem ele vem pagar o senhor. 

- Primeiro quero receber o atrasado. A caderneta está cheia de fiado.

- Meu pai vai pagar o senhor. Eu juro que vai! Ele é honesto.

Olhando para a rua, em solene desprezo, o dono da venda é incisivo:

- Não!

A resposta dói na alma da menina que veste singela chita estampada com florzinhas do campo. Chocada com a resposta escora no portal do armazém. O dono da venda lhe envia um olhar de pouco caso. Aturdida, fixa os olhos na calçada. Treme descontroladamente. Não é de frio; está calor. Talvez seja fome ou medo. Seu corpo, indeciso parece levitar. Dos olhinhos castanhos surge um filete de lágrima salgando a pele ressecada pelo frio seco no serrado em agosto. Seu rosto arde como pimenta malagueta.

Com a ponta do polegar ela tira a lágrima do rosto. A Rua 63, espichada para a Avenida Oeste, é o caminho da sua casa. Sai correndo em ziguezague para driblar a vergonha diante negativa do dono da venda. O corpo franzino vai envolvido numa renascentista aura dourada. A alma dos fregueses, em silêncio, é solidária. Todos se calam; nem o dono da venda ousa justificar. Para disfarçar o mal estar ele mexe o arroz da tulha com uma concha de lata. Lá fora os flamboyants do Bairro Popular soltam flores vermelhas e amarelas.

Nunca soube do destino da garota. Também não voltei à venda. Mas a imagem continua registrada na minha memória. Escrevo esta crônica com emoção. Ainda vejo o olhar assustado da menina. Tão assustado como os olhos de uma rolinha surpreendida pelo grasnido do gavião sobre o descampado.

Alguém me adverte de que página de jornal não é lugar para lamúria. Mas a cabeça da gente é entupida por lembranças. Muitas delas, infelizmente, são surdos lamentos que mordem com dentes de ferro a nossa alma; para o resto da vida. Volto, depois de muitos anos, à esquina onde jaz o armazém.

Subindo pela Rua 74, indo para o Mercado, tem um prédio com fachada em debrum azul. Um tapume de neon de uma farmácia cobre a eira e a beira; dos contornos do luminoso faíscam luzes douradas desenhando cintilantes florzinhas vermelhas e amarelas. O arremate do desenho forma um copo-de-leite.

Lá vem um gari com seu vassourão juntando o lixo da calçada. Não recolhe nenhuma flor de flamboyant. Elas sumiram do Bairro Popular.


Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

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