Aqui começamos esse inverno de secura no cerrado. Se, nessa época, a previsão indicar umidade maior de que a habitual é novidade. Mas, a tradição recomenda diminuir as atividades físicas e até dormir com uma bacia d’água perto da cama. Enquanto a ventania de agosto não chega a única brisa que move o mundo é a lembrança de outros anos secos que nem gosto de lembrar. Uma vez compramos tecido numa loja do centro para fazer roupa. Arnóbio, alfaiate famoso na Vila Nova, foi quem costurou a minha calça feita de casemira axadrezada, tecido inglês quente 'pra caramba'. A camisa domingueira era chamada de Volta ao Mundo. Vestidos assim, íamos ao cinema.
O retorno a pé para casa, em um trajeto sem árvores e poucos prédios, era penoso com o suor escorrendo por dentro da roupa. Insuportável. Hoje, quando passo pela Rua 3, procuro uma sombra para respirar o ar fresco de uma árvore ou a marquise de um loja. Do outro lado da rua um casal toma sorvete com guaraná. E me vem à memória aquela roupa imprópria ao nosso clima que usei um dia; durante muitos anos tive alergia por causa da calça de casemira. A recordação é o único meio de juntar ideias e palavras. Voltaire descreveu a memória como sendo o centro do sentido e do senso. Esse exercício das lembranças de ontem e de hoje reúne a essência da cidade e o destino cosmopolita de Goiânia.
Às vezes imagino que este cronista viveria melhor em uma cidade de temperatura mais amena. Mas, a alma de Goiânia me chamou primeiro. Sonho que Paris, mesmo na artificial definição de cidade luz, é mais atraente do que Dubai porque tem uma alma boêmia e romântica. Pois é, vejo Goiânia com essa vocação vadia. Se hoje é desvairada não foi por culpa dos românticos precursores.
Enquanto imagino coisas uma mulher se aproxima com uma Bíblia na mão. Diz-me antes de tudo: Jesus te ama! E me olha firme nos olhos. Talvez tenha pena da minha comprovada ignorância a respeito da vida. Traz a tiracolo uma bolsa com dizeres impressos em papel sujo por outras mãos. Cinquenta centavos por um pedido e o exemplo de um espírito iluminado para amenizar o sofrimento de quem vive nesse mundo. Essas palavras são para mim. Entrego-lhe duas moedas de vinte e cinco centavos.
Entre outras, ela tira uma mensagem de León Denis: “Padeci, e só os sofrimentos é que me tornaram feliz. Resgataram muitos anos de luxo e ociosidade. A dor levou-me a meditar, orar e, no meio dos inebriamentos do prazer, jamais a reflexão salutar deixou de penetrar minha alma, jamais a prece deixou de ser balbuciada pelos meus lábios. Abençoadas sejam as minhas provações, pois finalmente elas me abriram o caminho que conduz à sabedoria e à verdade”.
Devolvo a mensagem com um leve sorriso. Sinto que o autor foi em cima do que eu sentia naquele momento. Volto à realidade com o calor da tarde. Assim é Goiânia, assim Deus a escreveu como portal de uma civilização típica desse mundo.
O passar do tempo faz a gente se desfazer de muitas arestas. O além nasce na primeira madrugada do inverno.
Perdi folhas nesse outono, ganhei novas; quero viver a eternidade da próxima estação.
Estou a caminho...
Doracino Naves, jornalista: diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV e Canal Metrópole (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
Cronista do DM Revista - Diário da Manhã - Goiânia, Goiás
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Doracino Naves, apresentador do programa Raizes Jornalismo Cultural, Fonte TV Domingo 11:00 h.. Tecnologia do Blogger.
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