domingo, 2 de junho de 2013 | By: Doracino Naves

Metasonho

Quase noite. O lusco-fusco deita preguiçosamente sobre o capim jaraguá que começa a dar sinais de seca. Vem a noite escura e densa cobrindo com seu véu o caminho sinuoso que leva à cidade de Goiás. Quica, neta de escravos que continua escrava, apesar dos tempos novos, fecha a janela de madeira deixando de fora seres notívagos que vagam pelos currais e taperas mal assombrados. Não conhece nenhum lugar além da casa grande onde nascera e vive para o trabalho. Festas só na fazenda, assim mesmo para servir os convidados.
   
Aprendera com sua mãe, também escrava, apesar de liberta, a ser servil com seus patrões aos quais, por tradição dos escravos antigos, deve demonstrar gratidão e subserviência total. Os filhos do patrão foram estudar muito longe. Rio...Rio de Janeiro. É isso. Um dia, Maria de Lourdes, a filha mais nova, chegou à fazenda barriguda de neném. Depois de alguns meses foi embora deixando um menino aos cuidados da avó. Na verdade quem zela da criança é Quica. Balança suavemente o berço. Sussurra uma canção de ninar: “Boi, boi...boi da cara preta, pega esse menino...” Seu canto sai triste. Está macambúzia com a lembrança dos pais; cochila junto com o menino.

Uma luz oscilante de lamparina não decide se fica acesa ou se apaga com o vento fraco que entra através das frestas do telhado antigo. Acorda sobressaltada com o choro do menino. Já faz uma semana que ele chora quase sem parar. Seu umbigo crescera até estufar. Quica está para morrer de tanto sono. Mas o choro quase aos gritos não lhe dá sossego hora nenhuma. Sente o cheiro do mato misturado com as fezes do gado. O canto monótono de um curiango ecoa na noite. Ou seria voz de assombração? Está confusa pela falta de um sono longo e reparador. A mente tonta de sono vacila com pensamentos disformes.
      
 Mas, não descuida do menino. Procura fazê-lo dormir, quem sabe assim ela poderia dormir um pouco. Tem de ser disfarçado, pois se os patrões a pegam dormindo, talvez leve uma surra. Tem medo da patroa velha, gorda e má. Com sono sua cabeça fabrica sonhos alucinantes e terríveis. A avó do menino, com cara de fantasma, aparece com uma lamparina na mão. Na outra, uma caneca de chá feito com o sumo do assa-peixe branco. Pode ser bronquite. A velha dá o remédio e volta ao seu quarto com suas vestes brancas fantasmagóricas que balançam até desaparecer no corredor longo e madeiroso do casarão secular. Tóc-tóc-tóc, o tamanco martela os ouvidos de Quica. O sono irresistível distorce sons e a sua imaginação voa alucinada.
          
Sonha com bezerros negros caindo no rio pedregoso que desce das serras em volta da cidade. A correnteza arrasta os bezerros água abaixo. Depois sonha dormindo um sonho longo e profundo; o metasonho pouco ameniza sua vontade de dormir. Volta o choro berrado do menino e a desperta bruscamente. Pela primeira vez sente raiva daquela criança. 
        
Sai o sol. Os animais e os pássaros fazem festa no milharal. Tudo parece alegre; menos Quica. Dormir é a sua maior obsessão; ficaria até sem comer para dormir um sono pesado e sem preocupações. Distraída nem percebe que o menino chora. Sonha abandonada numa estrada sem fim perseguida por enormes caititus. Sobe num cupinzeiro alto, quando sente um empurrão forte. Era o patrão que a despertara com um soco nas costas. Vê a cara do patrão enfurecido gritando aos berros para olhar o menino. O garoto chora desesperado; parece manha. Sua ojeriza pelo patrão aumenta e tudo que cerca aquela casa tem um tom escuro de revolta. Ninguém a deixa dormir.
          
Sua patroa ordena: - vá, agora! lave a roupa que está no batedouro e depois varre a casa, inclusive a varanda e o quintal. No fim da tarefa o menino volta a chorar. Antes de a velha ficar nervosa, corre ao quarto para cuidar do menino.
         
Diabos! Esse menino nunca dorme; chora noite e dia sem parar. Nisso, ouve o tropel de cavalos apressados chegando à porta da sala. Era o peão a dizer que o médico chegava para ver o menino doente. Um Fordinho 29 ronca sobre o mata-burro. Enfim chega o médico novo e disposto. Entra na casa com suas botas rangedeiras de couro e vai logo ao quarto do menino. Após o exame decide levá-lo ao hospital, distante quatro léguas da fazenda.
             
 - Quem vai comigo para fazer-lhe companhia?
           
Quica receou que fosse ela a escolhida. Ponderou, em silêncio, que a patroa velha e doente não suportaria cuidar das tarefas pesadas da casa. Para sua sorte a patroa se prontificou em ir com o neto, talvez pensando em rever as comadres da cidade. A empregada se sentiu no céu.  Sem ter de cuidar do menino poderia dormir na sua cama de colchão feito de capim, ou quem sabe, à sombra da mangueira mais sombrosa do quintal. Coou o café de despedida. Saíram o três ao som estridente da buzina do  Fordinho  que berrava pelo caminho.
                 
Então, Quica se sentiu a mais feliz das escravas. Podia, agora, dormir e sonhar livremente.

                    
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raizes Jornalismo Cultural, na Fonte TV e Canal Metrópole (raizestv.net). Escreve ao sábados no DMRevista.

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