domingo, 4 de agosto de 2013 | By: Doracino Naves

Livro rejeitado


 Bruninho chegou ao consultório do doutor Veríssimo com um livro de nome estranho. Com a expressão triste bateu suavemente à porta.
O dentista se surpreendera com a presença do jovem àquela hora em seu consultório.
                                  E aí, prezado Bruno, como vai?
 Com as mãos já na linha da cintura, preste a entregar o livro, Bruninho falou emocionado:
                              Mamãe pediu para que viesse lhe agradecer por ter extraído o meu dente cariado que doía mais do que espinho de pequi cravado na língua. O senhor salvou o meu ano escolar, pois com aquela dor terrível não tinha ânimo para estudar. Por causa desse favor nós nem sabemos como lhe agradecer.
                                  Não precisa. Fiz o que outro dentista faria diante da dor.
Doutor Veríssimo observou o livro nas mãos do jovem, ajeitou e tirou os óculos, coisa que fazia quando estava nervoso. Pôs os óculos. Depois de ler o título, confuso, disse baixinho:
                                  Deve ser um bom livro. Entretanto - agora me lembro - o livro fala de amor, mas muitos o consideram obsceno.  
                                Doutor, minha mãe, que é dona de uma loja de livros usados, comprou este livro pensando em lhe presentear. Tenho certeza de que não é um livro imoral.
                                Nem Bocage ousou escrever um livro tão indecente. Se eu aceitasse o livro iria trazer a pornografia para dentro de casa.
                                 O senhor nem parece que se formou numa universidade de gente ilustrada. Imagina, trata o livro como se fosse lixo. É literatura, doutor... é arte. Minha mãe me disse que milhões de pessoas já leram esse livro. Olha só essa capa, doutor. É um primor.
                                Acontece, filho, que sou evangélico. Meus irmãos e minha família costumam vir aqui. Também recebo senhoras do bairro e este livro pode acabar com a minha reputação. Por outro lado, não é certo que eu guarde um presente no fundo da gaveta. Vamos fazer o seguinte: leve esse livro de volta. Depois eu converso com a sua mãe.
                                Não posso voltar com o livro, doutor. A rejeição ao presente há de nos causar uma enorme decepção. O senhor me curou de dente doído e nós queremos retribuir com um livro famoso. Não o rejeite, doutor. Eu lhe peço.
                               Ora, Bruninho, vocês não me devem nada. Dê lembranças à sua mãe e, agora, deixe-me atender as pessoas que me esperam na recepção.
                              Certo. Não vou lhe tomar mais tempo, mas deixo o livro. O senhor pode colocá-lo entre os outros. Ninguém vai ver o conteúdo. Até logo, doutor Veríssimo.
O livro ficou.
                              “É um livro curioso. O protético me disse que é instigante”.
Depois de pensar assim, doutor Veríssimo se lembrou do padeiro, seu amigo, que, certamente, gostaria de ler o livro. Afinal, ele é solteiro e meio malicioso.
                            “Fico livre dessa obscenidade literária e ainda agrado o amigo padeiro que sempre escolhe para mim o pão mais tostado e crocante”.
                             Bom dia, amigo. Eu lhe trouxe um livro de presente.
                            Obrigado.
                            Olha só a textura da capa. Que beleza!
O padeiro leu o título e se lembrou de que alguém lhe falara de um filme com este nome. E era proibido para menores de dezoito anos.
                          Não posso aceitar o presente. Minha mãe católica vive na igreja, está bem velhinha e eu não seria capaz de lhe causar um desgosto desses. Ela vive a pregar contra a sem-vergonhice dos dias de hoje. Não vou ficar com ele, leve-o de volta.
                            Você não pode recusar meu presente. Sua recusa afronta a nossa amizade.
O dentista deixou o livro sobre o balcão e saiu. Na hora da folga o padeiro folheou algumas páginas. “Ufa! É muito forte”. Decidiu ofertá-lo ao locutor do carro de som que falava maravilhas da sua padaria. “Penso que ele vai gostar, vive a declamar poesia às moças no caminho da sua propaganda. Ah, lá vem ele com o alto falante ligado”.  Fez sinal para parar. O carro para, o locutor diminui o volume do som.
                             Oi, Gervásio. Tenho um presente bacana para você. Como está ocupado, vou deixá-lo no banco de passageiro.
Fez assim, tão rápido que o motorista nem examinou o que ganhara. Parado no sinaleiro Gervásio resolveu examinar o que ganhara do padeiro.
              ”Onde vou colocar um livro desses. Moro em pensão e nem tenho gaveta para escondê-lo; e a arrumadeira do quarto vai pensar que sou algum maníaco
sexual. Ah, já sei. A mãe do Bruninho tem uma loja de livros usados. Talvez ela me pague bem por essa raridade”.
O locutor seguiu o seu pensamento, mas recebeu apenas alguns trocados pelo livro.
No outro dia, doutor Veríssimo se preparava para atender uma senhora que iria colocar a dentadura, quando, de surpresa, apareceu Bruninho segurando um livro.
                            Doutor, veja o que encontramos. Um livro igual ao outro. Este aqui mamãe lhe envia para que o senhor presenteie um amigo. Não é uma beleza? Vou deixá-lo em cima da mesa. Até logo, doutor.
Doutor Veríssimo nada disse, nem esboçou qualquer reação. Ficara pasmo.


(Publicado no Diário da Manhã - Goiânia - Goiás - em julho de 2013)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (WWW.raízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

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