segunda-feira, 16 de junho de 2014 | By: Clara Dawn

Outra de Simão Sem Caráter

 Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 14/062014
Pensei em escolher o personagem mais idiota das minhas crônicas. O título, fácil, fácil, é de Simão Sem Caráter. Ele nasceu assim; sem noção de nada e nenhuma personalidade. Houve um tempo em que morou numa casa adornada com belíssimo jardim que ele tratava com esmero. As flores mais coloridas ele ganhara dos amigos; alguns que moravam muito longe. Sua ocupação principal era cuidar do jardim. Isso ele fazia muito bem. Logo o seu jardim se tornou motivo de incontidos elogios.
      
Um dia, o velho Xaxado, famoso bêbado da Vila Nova, amanheceu estirado entre as flores do Éden de Simão. Na noite anterior Xaxado seguia um grupo de Folia, mas se perdeu e dormiu sob a lua cheia de seis de janeiro, dia de Santo Reis. Alguns vizinhos o encontrou entre os canteiros e o cobriu de pétalas coloridas com uma ridícula coroa de flores na cabeça. Ao ver aquela figura exótica imaginou que um santo havia baixado em seu terreiro. Sonhara com um anjo coberto de flores à sua porta. E o levou para dentro de casa.
     
Deu-lhe uma bola de almôndega e um copo de vinho Sangue de Boi. Mais um copo de vinho...mais outro. Logo a verve cachacista do bêbado acordou. Aduziu que poderia, na qualidade de anjo caído do céu, atender a um desejo de seu benfeitor.
     
Vamos, Simão, capricha.
      
Então, lá vai. Presta atenção no meu pedido.
      
Pensou, pensou – coisa que não era comum em Simão Sem Caráter – que desejava ter o dom revelado no seu nome: aquele que ouve. Seu desejo seria ouvir os anjos que imaginara em vôos festivos sobre o jardim. Desejava ouvi-los tocar harpa e falar com eles. Seria a glória perfeita ouvir os sons harmoniosos dos anjos. Com apenas um pedido Simão Sem Caráter poderia fazer milhares de outros; seria íntimo dos anjos. Mas, a egrégora formada pelos vizinhos faria justiça ao apelido dado a Simão. Xaxado se divertiu com a burrice do outro. Uma vez sem caráter, sem caráter pela eternidade. Nem é necessário um mago para atender a um pedido assim.   
         
Simão Sem Caráter foi ficando cada vez mais sem personalidade. E nada de ouvir anjos. Percebeu a burrada que fizera com aquele pedido. Dias depois, o bêbado Xaxado, em busca de bebida e mais uma pelota de almôndega, pôs na cabeça uma coroa de flores murchas - mais ridícula do que a primeira - e apareceu na porta de Simão.  Depois de beber e comer ouviu de Simão para desfazer o pedido. Xaxado o instruiu a se banhar no Rio Meia Ponte, para que o desejo fosse revogado. Simão seguiu à risca as instruções de Xaxado e voltou ao seu estado latente.
           
A passagem de Simão pelo Rio Meia Ponte não deixou nenhuma marca; nem poderia com aquela natureza delével. Continuou, como sempre fora, idiota e sem caráter. Tempos depois Simão foi convidado a ser júri de um concurso de música para um torneio de futebol. Foram inscritas músicas bem elaboradas e outras nem tanto. Simão nunca entendeu de música e nem de nada. Da forma como era idiota e sem caráter, para ser honesto, declarou vencedor uma música sertanejo universitário. E essa música rodou antes de todas as partidas. Os anjos ficaram furiosos com essa escolha.
        
E deu-lhe, para sempre, ouvidos moucos, próprios de quem não sabe ouvir uma boa música.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 14 de junho de 2014)

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