segunda-feira, 18 de junho de 2012 | By: Doracino Naves

O Meia Ponte corre para o sol

Nesse sábado deixei a amada na cama e zanzei pela cidade. O relógio nem chegara a seis horas. Uma parte da população ainda dormia; a outra, menor, descia dos ônibus que chegavam ao Centro de Goiânia. Gente de todos os jeitos; todos com cara de sono. A maioria é de mulheres madrugadoras que chegam para o trabalho. Aonde vão tantas pessoas antes do raiar do dia? Para o trabalho, ao hospital, visitar alguém, ou passantes com destino a outro bairro? Tentei adivinhar se vinham ou se estavam voltando. Percebi, pelas roupas amarrotadas de alguns, que estavam voltando para casa; guardas-noites, anjos solitários, que vigiaram o sossego de alguns prédios.
          
Um monte de gente saíra logo cedo em busca de um sonho, talvez muitos. Ou, talvez, para realizar o sonho de outros; isso é tropeçar na dificuldade  da vida. Algo assim, como tropeçar descalço nos tocos do trieiro, na madrugada fria da roça. Tropeçar sem botina dói a cabeça do dedão do pé, quando não dói o pé inteiro. Um palavrão sai incontinenti da boca. Com medo de assombração o roceiro logo pede perdão pela blasfêmia.
           
Uma mulher de meia idade me pergunta onde é a Rua 3. Antes de informar, pergunto o faz na rua a essa hora. Responde que procura emprego para o seu filho, numa loja de um parente distante.
          
-É pra tirar o menino da rua, ficar longe das más companhias.
          
Ela desce pelo canteiro central da Avenida Goiás. Nem perguntei o seu nome. Seu corpo, de ancas fartas, balança dentro de um vestido rodado, mais largo do que o normal. Alunos do Lyceu e de alguns colégios vizinhos passam com mochilas toscas às costas. Deixo o meu pensamento de jovem metransportar ao reino das emoções de outras épocas, quando tinha a mesma idade. Imagino os sonhos que passam na cabeça de tantos jovens. Uma doce e fraterna sintonia me liga à pressa dos adolescentes. Continuo andando.
           
Paro numa lanchonete vagabunda, dessas que existem no centro da cidade para atender os passantes mais apressados. Interessante, observo que as pessoas que, hoje, andam pelo Centro não são daqui. Talvez dos bairros da periferia.  Na lanchonete que vende um suco e um salgado por um real, ouço a rádio CBN com o noticiário matinal. Um pai, Cláudio, faz um apelo dramático para que alguém o ajude a arrumar uma internação para o seu filho de 26 anos, viciado em drogas.
            
Pede, emocionado. Sai um soluço e logo vem o choro compulsivo. Seu desespero conta, brevemente, a história do filho: pequeno na roça; seu começo de estudos numa escola pública; a descoberta do envolvimento do filho com as drogas; o vício que destruiu a vida da sua família. E o pai, convicto de que alguma ajuda virá, declara o seu amor ao filho. Diz que a sua luta vai continuar até livrar o filho do vício. Choro com Cláudio por perceber a insofismável distância das pessoas que se fecham ao problema alheio e dos governos que constroem estradas e prédios, mas não cuidam dos caminhos dos dos jovens. Com o passar das horas um formigueiro de gente circula pelas ruas.
            
Em Goiânia tem prédios, muitos.Tem ruas e miríades de árvores e flores espalhadas pelas ruas. Goiânia tem córregos e tem rio; o Rio Meia Ponte que corre para o sol. Então, eu me lembro de um trecho da poesia de Fernando Pessoa: O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio da minha aldeia/Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
             
Que estúpido sou eu que não percebe que a infelicidade do outra é minha. A memória da minha nave está ressuscitada pela graça  do sol. Penso nela...

Imagem: O Grito - de Munch
            
Doracino Naves, jornalista;diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraizestv.net). Escreve aos sábados noDM.

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