segunda-feira, 8 de abril de 2013 | By: Doracino Naves

Pijama de flanela




Noutro dia alguém me perguntou o que me inspira a escrever. Fiquei confuso com essa pergunta, feita, assim, de supetão. Ele emendou perguntando quem eu considerava o melhor escritor. Mais uma vez a pergunta veio como uma foice cortando o meu pescoço. Não me considero, nem um pouquinho, capaz de avaliar a obra literária de alguém. Respondi-lhe que leio gregos e goianos; americanos e russos; latinos americanos, espanhóis e portugueses. Também os ingleses, franceses, israelenses, árabes e todos os que acreditam no que escrevem. Inclusive, nos poetas mentirosos que, em seus versos, cantam amores eternos. Não arrisco mencionar nenhum nome porque poderia reclamar uma erudição que não possuo. Porém, muitas pessoas tiveram e têm influência em minha vida e naquilo que, modestamente, escrevo.

Qualquer cronista com um mínimo de cuidado presta atenção em tudo o que aconteceu ou acontece a sua volta. E, nessa observação do cotidiano que uma simples palavra, um olhar, uma poesia, uma música, um quadro de Amaury Menezes - nome de um grande pintor - já é suficiente para pensar um tema. Mas, hoje, a lembrança de meu pai Zequinha me traz emoções e uma saudade imensa. Vejo-o, plasmado no quadro das minhas recordações, andando rápido pelas ruas empoeiradas de Palmelo, onde foi coletor estadual.

Lembro-me do frio de um mês junho perdido nas brumas passadas e da montanha alta debaixo do céu azul do inverno palmelino. Eu e meus irmãos, cada um com pedaço de pão e um copo de leite nas mãos, vestidos em pijamas de flanela, a nos aquecer sob o sol da manhã, sentados na calçada de nossa casa. Na infância tudo é muito intenso. Por isso fica muita coisa fica gravada na memória.  Nesse dia meu pai desceu as escadas que dava à rua. Ele me parecia alto, superior. As ruas da minha infância, pintadas em cores vivas na minha memória, são largas e compridas. Eu enxergava aquela serra como se fosse o topo do mundo. Depois que cresci vi que meu pai não era tão alto como eu imaginara. E aquelas ruas, na verdade, são estreitas e curtas como convém a uma cidade pequena do interior de Goiás. E a montanha? Bem, a montanha não é uma montanha que se possa chamar de montanha. Mas, o céu continua azul, imenso e translúcido, talvez iluminado pelos espíritos evoluídos que passaram por lá.  
          
Respiro fundo tentando trazer o cheiro da infância ao presente. Sinto cheiro do araticum maduro no cerrado; da manga coração-de-boi madura em uma tapera abandonada; do caju roubado do quintal do Chiquinho Gonçalves; da mexerica enredeira do quintal do tio Eurípedes. Vejo, sob o céu de agosto, as pipas coloridas cruzando os ares da infância livre, dos sonhos e da esperança despertas pelo rádio à válvula sintonizado na Rádio Globo. Então, a inspiração de um cronista pode vir de fragmentos da vida. A vivência é que me inspira a escrever. São recordações que um dia se perderá no eterno firmamento do Cosmo.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 06 de abril de 2013)
          
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista. 

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