segunda-feira, 22 de abril de 2013 | By: Doracino Naves

Morador de rua


Os sonhos são feitos de uma substância tão fina quanto o ar.Cada pensamento que se incrusta na mente acende uma tocha. Ele se insinua sutil e vagarosamente, como o amanhecer vence a noite, na discreta transição entre o sonho e a realidade. Só o querer é capaz de transformar o sonho. Então, o desejo é capaz de vencer as trevas? Nem sempre. Penso que existe uma imponderável ideia que, em sua essência, é uma poderosa força a conduzir as coisas do mundo. Mesmo no livre arbítrio percebo uma energia abissal que sabe tudo sobre todas as coisas. Todos os meus pensamentos convergem a esse ponto central do universo. Uma pequena luz, por menor que seja, pode ser o início de um projeto.  

A ideia é uma luz fecunda acesa pelo espírito. A sutileza do talento é a inspiração que brota para auxiliar o raciocínio na sua tarefa de sublimação da realidade. A poesia vence o caos; o dom da alma se revela na infinita capacidade de criar. Gosto de pensar que sei escrever. Por que, não? Afinal, quando leio Fernando Pessoa, penso como se fosse mil poetas. Nesse instante imagino o meu Meia Ponte como se fosse o rio Tejo. Mas, pensando bem, nem sei para aonde vai o meu rio. Pessoa, ao contrário, sabe que o rio Tejo vai para o mundo, entra no mar e tem grandes navios. No Meia Ponte nem canoas tem.

Também gosto de ler Rubem Braga que via o mar entre as árvores e o telhado da sua varanda. O sol de Braga resplandece e o vento nordeste tange o azul das águas com espumas que flutuam e morrem na praia. Da minha janela vejo um mar de prédios que encobrem a minha visão. Rubem Braga assiste o sol nascer do outro lado do oceano. Da minha janela nem vejo o sol. No meio da penumbra há um mundo de solidão nascendo perante os meus olhos cansados. Algo se movimenta lentamente sob um monte de coisas.

No alpendre da casa abandonada um pobre homem perdido entre folhas de jornais, cobertores e papelão que cobrem o seu corpo. Ele estava só, nenhum amigo, nenhuma mulher, talvez nem sonhos. O morador de rua espera o amanhecer sem nenhuma pedra na mão. Para uma alguém nessa situação o sonho é um permanente espanto. E o chão da noite é o esperado repouso, talvez o lugar do último suspiro.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - Goiânia - Goiás em 20 de abril de 2013)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista. 

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