sábado, 31 de março de 2012 | By: Doracino Naves

Motoboy escalado para decolar ônibus espacial

Praça Tamandaré. Sete horas da manhã. Goiânia acorda em frenesi. Já virou rotina o trânsito maluco da cidade. Sentado num banco de cimento,  pego um bloco de notas e uma caneta, enquanto Ferrugem lava o meu carro. Suas mãos espertas jogam água para tirar da lataria o rajado da poeira das ruas com os últimos pingos da chuva dessa temporada. 


Os carros passam apressados. Não sei se vão ou veem.  Alguns motoristas passam com as mãos grudadas no volante; outros põem o braço esquerdo pra fora e deixam a mão balançar ao vento fresco da Praça. São mãos de homem, de mulher; mãos brancas, negras; com anel, sem anel.  Todas as mãos, sôfregas, buscam um caminho seguro. Hoje, só hoje... me sinto como se fosse um motoboy escalado para decolar ônibus espacial.

Em frente, na engraxataria do Vilmar, os engraxates trabalham com as mãos batucando panos no ritmo de um samba novo. Os sapatos brilham; foram acordados pelas mãos apressadas de seus donos.  Nas ruas, mãos automáticas pulam do volante ao câmbio sem pensar. De repente, o ranger de freios. Nem ouso imaginar os pensamentos dos motoristas.  A pé, uma mulher vem pela calçada segurando uma bolsa sobre o ombro direito. Na mão esquerda uma sombrinha colorida, fechada, a espera da bênção da chuva. O que será que ela leva naquela bolsa corroída, suja, que necessite  uma mão firme a segurá-la. O caixa da banca de revista usa as mãos para passar troco do jornal. Deu no DM que a escassez de água pode levar à guerra mundial.
 
 
E guerra é feita por ideias amalucadas guiando mãos desembestadas. Oh, céus, as mãos! Elas,capazes de criar, também são diabólicas; capazes de atos vis. Prefiro acreditar nas mãos que afagam e protegem. Um pai, do lado oposto, atrasado para o serviço,puxa uma criança pela mão. As mãos calejadas do pai forçam o menino a saltitar para acompanhar seus passos largos. Pai e filho caminham unidos pelas mãos. Miríades de mãos ávidas passa no universo da Praça Tamandaré. Olho para as minhas que já mostram manchinhas marrons nas costas.
 
 
Elas sempre sonharam em ser mais do que uma taça; ainda aspiram ser um lago.  Melhor ainda, minhas mãos ambicionam ser um rio Amazonas de possibilidades do bem. Olho em volta. Uma parte da cidade já está nas ruas.  Um homem está sentado ao meu lado. Vejo cair do seu rosto uma furtiva lágrima. Parece solitário e desesperado. Suas mãos, em posição de prece, suplicam. A mão esquerda fechada enxuga as lágrimas que teimam em passar a outra face. Seus olhos choram.
 
 
 
Quis saber o porquê daquela tristeza angustiante. Balançou a cabeça desesperançado. Olhei para as ruas repletas de mãos apressadas cada vez mais insensíveis  para alcançarem a oitava hora do dia. O homem olhou para os lados como se procurasse alguém. Fitou-me com a expressão suplicante que jamais vou esquecer. Suas rugas do tempo maltrataram ainda mais o rosto cansado da espera.
 
 
 
-Estou procurando meu filho que desapareceu ontem cedo. Ele só tem dezesseis anos; saiu de casa e não o vi mais.Ele frequentava esta praça. Como pode ver, estou desesperado. Não tenho ideia do que aconteceu com ele.
Não tive coragem de imaginar o pior. As mãos daquele pai, velhas e rudes, pareciam também de afagos; talvez seja mas mãos de um trabalhador da construção civil. Tentei consolá-lo.

- Não se desespere. Talvez ele tenha perdido a hora de voltar pra casa e dormiu na casa de um amigo. Logo ele vai aparecer.
Nisso, uma moto pequena,velha e suja, encostou junto ao meio-fio. O homem disse-lhe com um sorriso torto:

- Achei o Rodrigo. Ele está preso na delegacia do Setor Pedro Ludovico.

Seu olhar se tornou radiante. Apoiou suas mãos no banco e, num impulso, se levantou. 
- Graças a Deus! Meu filho está vivo!

Suas mãos falaram da fé em encontrar o filho e do desapontamento pela notícia de que ele estava preso. Agora, cheio de esperanças, suas mãos colocaram o capacete na cabeça. Grudaram na garupa da moto e saíram em disparada entre os carros.

Percebi que ninguém é tão comum que não tenha a sua história. Temos intensas vidas interiores e paixões devastadoras como experiência.

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