sábado, 3 de março de 2012 | By: Doracino Naves

Morcegos Indiscretos

Simão Sem Caráter, Quincas e Ezequiel, na expectativa de abrir o cofre, eram os três mais ambiciosos moradores do Parque Santa Cruz. Lá fora, as labaredas do fogo encrespado iluminavam toscamente o interior do casebre construído com as sobras de outras casas.Simão acendeu a única lâmpada da sala. A cama, com colchões de capim, tinha lençóis e travesseiros amarrotados e encardidos. Num canto do barraco havia um fogão com restos de comida e, sobre as asas, pratos e um bule de café ainda sujos. A miséria tornara-os desconfiados e ambiciosos.

Antes de abrir o cofre os três falavam do que poderia ter naquele cofre. Pensaram em joias, ouro, anéis de diamantes; talvez dinheiro. Simão se lembrou de Dom Eugênio, o rico comerciante que recebera, na terra, a sua riqueza. Simão também queria receber a sua herança em vida; não no paraíso.  Lembrou-se da história bíblica do rico e Lázaro. Olhou, de soslaio, para Quincas. Parecia rude, mas não era; gostava de ouvir Tom Jobim e Chico Buarque.

Ezequiel vivia esquisito; ateu,cínico e dissimulado. Simão Sem Caráter armou um plano. Antes, os três abririam o cofre. Uma lanterna foi arranjada às pressas para compensar a luz fraca. O interior do cofre parecera vazio. Essa impressão foi desfeita por Quincas que percebeu o fundo falso. Esse artifício tornava o cofre muito pequeno por dentro. Com a mão direita moveu uma pequena haste em forma de borboleta. Aparte imbricada do cofre se abriu.

Com os olhos faiscando de ambição viram uma pequena montanha de notas. Talvez 80% do cofre estavam cobertos com dinheiro. Pensaram em retirar as notas quando ouviram um barulho do lado de fora do casebre. Quincas foi verificar o que fazia barulho; um cachorro vira-latas procurando comida. Aproveitou para vistoriar o terreno; nada havia de suspeito. Com a aprovação de Quincas, Simão pediu a Ezequiel para comprar uma garrafa de pinga. Iriam comemorar a descoberta da fortuna guardada no velho cofre.

Os dois não saíram de perto do cofre. Ezequiel comprou duas garrafas de pinga, colocando numa delas,a de melhor marca, um veneno mortífero. Todos pensavam em ficar sozinho com o dinheiro. Ezequiel chegou cantando uma canção – um réquiem ameaçador.

O cheiro de “dama-da-noite”tornara o ar seco ainda mais funesto. Ezequiel abriu a primeira garrafa de pinga. Beberam até que, embriagados, se abraçaram e cantaram animadamente. A cantoria desafinada mostrava o clima de discórdia entre eles. Ezequiel combinou com Simão dar cabo de Quincas. Para convencê-lo dissera que o dinheiro ficaria melhor nas mãos dos dois. E que nenhum parente iria procurar por Quincas; seu corpo seria enterrado debaixo do monte de lixo. Jamais seria encontrado. Ezequiel ainda lembrou a Simão sobre a desfeita que lhe fizera Quincas, chamando-o de ignorante por ouvir Vicente Celestino. Simão Sem Caráter concordou sem saber que Ezequiel tinha uma garrafa de pinga com veneno mortal.

Armaram o golpe, à traição. Um canto de coruja, misteriosamente, envolveu o aterro o Parque Santa Cruz. Uma ponta de faca “peixeira” brilhou sob a luz da lâmpada amarela; toda a lâmina entrou no coração de Quincas. Seus olhos vidrados pediram clemência. Já era tarde para isso. 

Um filete de sangue escorreu da sua boca. Ezequiel ainda desfechou outro golpe para ter a certeza do seu intento. Simão Sem Caráter, pela primeira vez na vida, resolvera, no fragor daquele ato, tomar uma atitude extrema. Tirou da cintura o punhal que guardara para a sua defesa pessoal. Cravou-o firme nas costas de Ezequiel, vazando o peito esquerdo; ele caiu sem vida. O sangue jorrou sobre as notas guardadas no cofre. Pronto, os dois estavam mortos. Agora o dinheiro seria todo seu. Pegou a garrafa de pinga e, num gole longo, tomou quase a metade. A aguardente desceu rasgando a sua garganta seca. Um morcego, testemunha da tragédia, voejou por entre as pobres paredes do barraco.

Retirou rapidamente parte do dinheiro guardado no cofre, colocando-a num saco de linho grande. Antes de amarrar aboca do saco sentiu um agudo tranco no estômago. Parecia que as brasas da fogueira passaram para dentro das suas entranhas. A boca amargou um acre horrendo. Era veneno o que bebera. Gritou por socorro chamando pelo nome de Dom Eugênio e Marta. Tinha tomado pinga com veneno!

Na ânsia da morte retirou parte do dinheiro com as duas mãos e jogou-a pelo ar. Em seguida caiu numa poça de sangue grosso dos outros dois.

Uma nota de dinheiro novo caiu sobre o seu peito. No estertor da morte viu a figura de Mário de Andrade numa cédula de quinhentos mil cruzeiros que passara do tempo de ser trocada pelo Banco Central.

Naquela hora um bando de morcegos indiscretos passou pelo casebre. O pio da coruja sacudiu a noite no lixão do Parque Santa Cruz

O dinheiro vencido - sem valor - ficou dentro do cofre.

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