sábado, 25 de fevereiro de 2012 | By: Doracino Naves

O cofre

Entrando no lixão do Parque Santa Cruz Simão Sem Caráter viu uma fogueira. Ela estava no centro do terreno com o resto das demolições que o caminhão da prefeitura recolhera pela cidade. A fogueira iluminava um cofre flamejando misteriosamente como se tivesse saído do inferno.A lua cheia clareava o lixo descartado: calçados sem par; pedaços de portas e janelas cansadas de abrir e fechar; tijolos e telhas quebrados que serviram de proteção do sol, da chuva e do frio de longas madrugadas; uma válvula de rádio sufocada por não mais poder falar aos ouvidos do seu dono; pedaços de roupas abandonadas, sem ilusões; trapos sem serventia. Tudo ali cheirava a esquecimento e abandono. Até Simão e seu dois amigos - Ezequiel e Quincas -,que moravam debaixo de um casebre construído com o resto de outras casas desprezadas, tinham mofo nas ventas. Cercado com dois fios de arame farpado bambo, aquele lugar sugeria uma aldeia sem muros e sem cadeados.

Simão passou através lixo esparramado percebendo a curiosidade reverencial dos dois amigos diante do cofre recolhido de uma construção no Setor Universitário. Ezequiel e Quincas trabalhavam na coleta do lixo. Os donos da casa demolida explicaram a eles que era o cofre vazio do avô que morrera “de repente”.Desfaziam-se dele para esquecer a sovinice do velho que passara sua vida miserável pendurada nos parentes. O cofre parecia um totem nomeio daquela fogueira estranha. Simão Sem Caráter, por não gostar de trabalho duro, cuidava do barraco.

Para Simão o cofre era um intruso que haveria de trazer mais confusão. O formato de ataúde o tornava funesto. Curiosos, os três combinaram levantar cedo para um ritual de abertura. Juntaram as ferramentas próprias: uma marreta; dois pés-de-cabra e um maçarico emprestado pelo vizinho mecânico. Mesmo depois de muito esforço - que durou todo o dia - o cofre não abriu. Talvez fosse o espírito do velho emperrado dentro do cofre. A curiosidade aumentou. Simão se lembrou do que lhe ensinara Dom Eugênio,especialista em abrir o cofre da loja do sogro, em Vila Boa. Balbuciou algumas palavras antes de começar. Deitou-se com o ouvido na tranca e, bem devagar, rodou o miolo até ouvir um ruído: cleck! Rodou de novo ao contrário: cleck! Mais outro no sentido inicial: cleck! Moveu o ferrolho e a porta do cofre, finalmente,cedeu.

Olhares ambiciosos cravaram no cofre com a porta ainda cerrada. Cada um sonhou riquezas. Ezequiel queria um armazém, mesmo pequeno. Quincas voltaria à sua terra, Ituiutaba, em Minas Gerais e, se desse,compraria uma casinha para a sua mãe. Simão, abandonado por Marta depois que ela exigiu que o dinheiro surrupiado de Dom Eugênio fosse entregue a ela, iria achar Marta em qualquer lugar em que se encontrasse. Ah, isso ele iria fazer,era só ter dinheiro no bolso.

Os três fizeram pacto de segredo sobre o cofre.Enquanto isso, alguém chamou da entrada do lote e foi entrando. O corpo grande do mecânico cobriu o sol vermelho que se deitava na direção do Setor Pedro Ludovico; pedia o maçarico de volta. Rapidamente, o cofre foi camuflado com um cobertor arranjado às pressas. O trio sentou no cofre como se fosse um ovo a ser chocado. O mecânico puxou um tamborete com assento de couro puído. Esparramou sua bunda gorda no pequeno banco e contou lorotas... O folgado esgotara a paciência dos três com a tardança. Finalmente, ao sentir o desinteresse pelas suas piadas borras, o mecânico foi embora com a tarambola.

Sôfregos, carregaram o cofre escondendo-o dentro do casebre para abri-lo sem testemunhas. Anoiteceu rápido. O vento seco de agosto soprou as cinzas da fogueira esquecida no terreiro, tinha brasas vivas por baixo do borralho; o fogo encrespou. Labaredas ziguezagueantes clarearam, mais do que os objetos esparramados no monturo, a mente ambiciosa dos três. Ezequiel disfarçou olhando de lado; Quincas pigarreou sem graça, expulsando a gosma amarga da garganta intumescida de ambição. Simão Sem Caráter ficou onde estava sem nenhuma expressão suspeita. O cofre, hirto, tinha o porte de uma esfinge voraz.

Leitor, paciência, na próxima semana contarei sobre a abertura do cofre.

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