sábado, 11 de fevereiro de 2012 | By: Doracino Naves

Simão Sem Caráter

Simão nascera sem caráter. Vivia em permanente angústia pós-férias;  nunca se habituara ao trabalho. Seu único emprego foi de guarda-noite de cemitério, emprego arrumado por Dom Eugênio, comerciante de tecidos, casado com uma filha de portugueses ricos do Rio de Janeiro. Seu sogro tinha uma rede de lojas espalhadas pelo Brasil. A de Goiás, filial. Simão pediu demissão do emprego logo que conheceu Marta e se apaixonou por aquela loura de pele ebúrnea, peitões de vaca holandesa e quadril largo. Deixar o emprego foi exigência da moça para se casar, pois  não queria ser esposa de alguém com um emprego tão esquisito. O casório, todo financiado por Dom Eugênio, o antigo patrão e agora amigo, fora realizado na cidade de Goiás.

Simão desempregado foi se acostumando com o ócio por absoluta falta de caráter. No começo do casamento achara estranho Dom Eugênio sempre por perto para acudir suas necessidades. Depois de algum tempo descobriu que aquele empenho do amigo tinha outro endereço: a sua amada Marta. Dom Eugênio, seu padrinho de casamento e, pelo visto num dia em que chegara mais cedo de uma tarefa arranjada de propósito, entrara de sócio sem o consentimento do marido, no desfrute de Marta. Simão nem teve coragem para reagir. Amava Marta, mas não queria lutar por nada desse mundo. Parecia mais interessante aquele emprego de corno.

Sabia que sua mulher se tornara amante de Dom Eugênio e a tudo suportava sem reagir. Sempre foi esfaimado, principalmente no tempo de adolescente. Agora, depois do casamento, sem vontade de nada fazer, engordara uns trinta quilos com a sua fome sempre acordada. E a preguiça fora uma graça eterna da qual não desejava se desfazer. Simão sem caráter nem se preocupava com a sua aparência.  Marta, ao contrário, se mantinha em forma física de fazer inveja às mulheres da cidade. Num dia daqueles ela se aprontara para sair logo depois do almoço.

Viu-a colocar o vestido  o espartilho sob o vestido rodado. Saiu com sua sombrinha colorida a rodar sobre suas nádegas que balançavam no remelexo do andar, até sumir no fim da rua.

- É uma graça de mulher! É uma graça de mulher!...

Ela lhe dissera que ia se encontrar com o grupo de amigas da irmandade Generosas do Largo Santo. Poderia até pensar que ela iria se encontrar Dom Eugênio.

Mas, por que essa desculpa agora, já que eles tinham uma alcova na própria casa de Simão?  Para manter as aparências Simão dormia com Marta no quarto de casal. Consentia silenciosamente com todas as vontades de Marta e Dom Eugênio. Mas, ninguém lhe pedira para abrir mão de coisa alguma; ninguém justificava nada. Nem precisava, Simão era sem caráter. Dom Eugênio sabia dessa apatia do sócio e aproveitava da sua fraqueza mental. Inclusive, abrira em nome de Simão uma conta na Caixa de Uberaba, onde depositara enorme quantia em dinheiro furtada do sogro. Sempre que conseguia burlar a contabilidade depositava mais dinheiro.

Da porta da sala Simão olhou para a rua. Viu o Ford 29 de Dom Eugênio passando em frente à Igreja do Rosário. Ia a sentido contrário ao de Marta. Não teve ânimo para pensar mais nada. Entrou na sala ampla da casa e recostou numa cadeira pesada, feita de madeira nobre. Tudo na casa – inclusive a própria –  pertencia a Dom Eugênio. Fechou os olhos e começou a pensar na infância passada às margens do córrego Bacalhau. Lembrou-se de que, desde aquela época, não tinha caráter. Atendia, resignado, as brincadeiras do amigos sem reagir.

Lembrara nos grandes incêndios no morro do Padre e de uma enchente do Rio Vermelho.  Durante o cochilo sonhou com uma buzina urrando na porta da sua casa. De repente acordou. Não era sonho. Dom Eugênio chamava-o com estridente buzina. Saiu apressado para ver o que ele queria. Os dois se encontraram na soleira da porta.

- Vamos entrar, Dom Eugênio.

- Não, obrigado. Estou com pressa.

Dom Eugênio olhou por cima dos ombros de Simão procurando Marta. Seus olhos pareciam querer saltar do rosto macilento e embora  estivesse nervoso,  parecia humilde.  Dom Eugênio, que tantas vezes o desprezara e até o destratou em presença de Marta, até que merecia ouvir umas boas,  mas Simão sem caráter nada disse.

- Na semana que vamos à Uberaba retirar dinheiro...

Simão se lembrou o quanto amava Marta. E esse amor é como o tempo, resiste aos acordes do violino e abençoa a doçura do mel. Viu Dom Eugênio ir embora no seu carro importado. A sensação de humildade que tivera desfez-se na arrogância  daquele homem que simplesmente o ignorava. A falta de caráter de Simão não lhe permitia julgamentos, mas tanto tempo de ócio deu-lhe uma mente criadora de soluções incriveis e uma delas ele ousaria realizar. De algum modo Dom Eugênio pagaria por anos de humilhação. Ah, por isso, pagaria!

Algum tempo depois, Dom Eugênio chegou à porta da casa de Simão e Marta com uma tropa de burros e alguns serviçais. A viagem seria longa, talvez um mês para ir e voltar.  Bateu palmas. Estranhou a casa fechada. Alguns minutos depois apareceu a empregada da casa.

- Onde estão todos?

- Sinhô, seu Simão e dona Marta foram embora. Mas não falaram aonda iam, não Sinhô.

Seu rosto macilento ficou ainda mais pálido. Procurou por todos os cantos da casa alguma coisa que indicasse o destino do casal. Percebeu que o primeiro destino seria a Caixa de Uberaba. Não poderia impedi-lo de sacar o dinheiro. Estavam com uma vantagem de dias e, afinal, o dinheiro estava depositado em nome de  Simão. Sentou-se no portal da casa e chorou. Não sabia se era de saudade de Marta ou pela perda do dinheiro surripiado do sogro. Esse caso aconteceu no final de setembro. O cerrado estava carregado de flores e foi mesmo uma pena Dom  Eugêncio espenear sobre elas.

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