segunda-feira, 26 de março de 2012 | By: Doracino Naves

O chocalho

O som afinado do chocalho de vaca apura as oiças do peão. Na fazenda Felicidade cada animal tem um chocalho com afinação diferente. Até os cachorros usa um chocalho menor. Chocalho é um sininho feito de latão com uma bolinha de ferro presa no badalo. Fica pendurado no pescoço do animal por uma tira de couro curtido. Pelo repicar do chocalho se acha um animal perdido no meio da mata. Curioso é que só os mansos recebem o chocalho. Segundo os entendidos, os mansos apascentam outros da espécie. Por essa causa são 'premiados' com este troço pendurado no pescoço. Animal brabo põe os outros a perder; quando um corre os outros seguem a correria do mais arisco. Então, para manter os rebeldes o melhor é assinalar o mais brando; os outros ficam sempre perto do líder mais calmo.

Sinhô Sinfrônio é o dono das terras no mediterrâneo entre os rios Dourados e Piracanjuba, em Hidrolândia. A casa principal foi construída à beira do córrego das Grimpas. Tinha portas altas de madeira trabalhada, duas folhas pesadas pintadas de azul, penduradas em dobradiças rangedeiras. A família do patrão era pequena; a mulher e dois filhos bobos; gêmeos e sem serventia. Longe da casa, no meio das mangueiras e longe do curral, a senzala. Da casa se ouvia o som de chocalho vindo daquele lado.  Um dos escravos, o mais manso, carregava um chocalho pendurado no pescoço com uma haste de ferro aferrada com parafusos enferrujados e uma afinação especial. Benício, o capataz, cuidava de tudo; da lida no cafezal ao controle do serviço escravo.

A principal renda da fazenda vinha da plantação de café. Benício era temido até pelos animais. O rosto rude, com apele enrugada pelos anos, emprestava-lhe um ar tenebroso. E fazia jus ao seu jeito. Mas tinha pelo Sinhô uma lealdade canina. Porque fora salvo por ele de uma tromba d’água do Grimpas há muitos anos; a família do capataz desapareceu arrastada pela correnteza.  Criado pelo fazendeiro Benício não conhecia outro lugar além da fazenda. Numa catarse medonha, cumpria, zelosamente, os mandados do chefe.

Depois da tarefa cumprida, aliviado,refugiava-se num lugar escondido no meio da mata, às margens do córrego Grimpas. Entre as sepulturas espalhadas pelo campo o capataz andava calçado com botas de cano curto tropeçando num chocalho vomitado das entranhas da terra.Distante uns 20 metros outro chocalho com haste de metal e restos de pele negra era arrastado por um bando de urubus famintos. Talvez desenterrado por um fuçador tatu galinha.

Em silêncio sentou-se em um tronco caído e ficou olhando longe. Nada parecia feliz naquela fazenda. Até o som do chocalho de vaca ressoava desafinadamente triste no sertão. Um trovão de novembro chacoalhou a terra. O aguaceiro em forma de tromba d’água furiosamente levou Benício. Ele se entregou resignadamente ao som de um chocalho. Enquanto rolava junto com paus e pedras ouvia o som de chocalhos a apurar a sua alma. Um sino tocou no céu.

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