segunda-feira, 27 de janeiro de 2014 | By: Doracino Naves

No limbo das aparências

Os andarilhos loucos - do tipo que, sob chuva ou sol, enfrentam estradas com mochilas nas costas - são pessoas interessantes. Não consigo passar por eles sem pensar no seu destino de aparência inglória; talvez enxerguem um arco-íris no fim da linha. Penso que é isso, pois além do sacrifício do corpo deve haver algo fascinante do outro lado da linha de chegada que justifique ao espírito o esforço de caminhar sozinho. Corpo viajante, alma inquieta que não para; viajando, viajando, viajando. Corpo viajante que não sabe dizer de onde vem ou quanto tempo vai durar a marcha; viajando, viajando, viajando.

Vê a estrada como se fosse a única porta, nem se lembra do que houve no passado; anda no presente sem se perturbar com quem passa de carro, caminhão, ônibus, moto, bicicleta, carroça, ou quando é ultrapassado por outro maluco com sua traia nas costas. Mas se um avião cruza seu espaço, seus olhos atentos se voltam para o alto. A solidão do andarilho - aprendiz de querubim - é arrebatadora porque, enquanto vive no limbo das aparências, mira o céu. Então, viaja, viaja, viaja determinado a sair das trevas à luz da eternidade. A recompensa de um andarilho é chegar a um cantinho de aconchego perto de Deus.

Então, se tudo acontece assim, ignora as pedras e as dificuldades do percurso para completar a sua caminhada. Por certo, no futuro, haverá de renascer como querubim para auxiliar outras almas viageiras. Vai, andarilho, viaja, viaja, viaja até alcançar a Verdadeira Luz. Seu prêmio será asas fortes para voejar em outros mundos; igual à lagarta que se arrasta penosamente - vira crisálida e geme suas dores ancestrais até ganhar asas coloridas - depois se transforma em borboleta e voa livre sobre a terra.  

No mundo há loucos sedentários, andarilhos locais e os loucos nômades sem destino aparente; observo os últimos. Suas manhãs são decisivas; as tardes ascéticas são prenúncios de noites tortuosas. É quando de seus olhos caem densas cortinas de chumbo: chega a noite solitária depois de muito vaguear ao som dos salmos de seu espírito cigano. Os pés exaustos estão calçados com as brumas do tempo. Não existe abrigo nesse lugar, o andarilho desaparece na mata, se transforma em pau, pedra ou num reles cupinzeiro; dorme seguro sendo parte de tudo.  Só a luz da alvorada é capaz quebrar o encanto; recomeça a caminhada.

Em seu corpo se assenta a bata suja feita com os trapos de outros corpos. A nova manhã tem a cor de abóbora queimada; o dia será, como todos os dias no mundo, amarelo-sol; a tarde há de revelar o fogo que reflete a diversidade colorida da luz poente. O andarilho não tem futuro, só a si mesmo que carrega em suas pernas que se movem como se fossem retiradas de um robô.

Seus pés feridos pela dureza da estrada comandam passos firmes que vão diretos ao alvo. O andarilho não tem pai, mãe; nenhum parente o acompanha na sua jornada de fé. Mas, Deus o protege na promessa de ser anjo.

Vai, andarilho louco, vai com os sacos sujos às costas. Vai, sim, viaja com a alma limpa de pensamentos vãos. Adeus para sempre, querido andarilho, seu destino é a eternidade. Em nome do querubim, da alvorada e da borboleta. Amém!


Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na PUC TV, sábado, 13h30 (WWW.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

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